Curta nossa página


Hora da folia

Feitos na vida, sabendo viver ao seu próprio modo

Publicado

Autor/Imagem:


Responsável por levar a bandeira, Deodato passa o estandarte na cabeça dos homens que participam da festa e estão em roda, em frente à casa. Alguns se ajoelham. Depois, entram na residência e começam a tocar e cantar diante de uma lapinha, um pequeno altar feito de folhas de buriti e flores de gravatá. Dentro da casa de teto escurecido pela fumaça do fogão à lenha, uma estampa de São João, um desenho de Nossa Senhora Aparecida.

As mulheres ficam na cozinha. Meninos e meninas disputam espaços nos cantos das portas para acompanhar a apresentação. Os homens estão com velhos violões, cavaquinhos, pandeiros e chocalhos. São 25 minutos ininterruptos de uma melodia sem alterações. Em seguida, dançam o lundu, em pares, um de costas para o outro.

Deodato retira de um bornal um litro de aguardente com diversas ervas do cerrado e dá um cálice da bebida a cada folião. O ritmo fica mais veloz. Fazem uma roda, depois organizam uma cenografia, que chamam de quadrilha, trocando de posições, como se estivessem trançando uma corda com os corpos. Outras garrafas de bebida passam de mão em mão.

Os homens estão quase em transe quando começa a ser servido o jantar numa mesa improvisada do lado de fora da casa. Ali, moradores oferecem paçoca de carne de porco, arroz, macarrão, feijão e sucos. Durante a noite, foliões se revezam nos instrumentos musicais e na adoração à lapinha.

Já de manhã, a primeira parada é num cemitério. A cruz que marca a sepultura da sogra de João Grilo está tomada pelo cerrado. Ele conta que escreveu num pé de gonçalo, uma árvore frondosa, a data da morte dela. A árvore engrossou, o tempo apagou o registro. Em outro cemitério na mata, o folião Valmir de Moraes conta que ali está enterrada uma irmã que morreu em trabalho de parto. A filhinha também morreu. Sem caixões, os corpos foram levadas à sepultura sobre um estrado de buritis.

João Grilo retoma a caminhada, agora por uma trilha estreita na mata. Uns vão a cavalo, outros de motocicleta e a maioria a pé. Mulheres e crianças são as últimas. Cada palmo de cerrado tem uma história para essas pessoas. Num trecho da estrada, João Grilo mostra o primeiro buriti em que subiu na vida. Passou a infância ali.

O folião Milton Pereira de Moraes, de 29 anos, que recebeu o apelido de Cabelinho pelo corte estilo punk, quer saber a história do alferes. E também conta sua história. Trabalhou em eucalipto por alguns anos. Com a crise, voltou para a comunidade. “Conheço todo o processo do eucalipto, do plantio ao corte”, afirma.

Em meio a cantos que ecoam entre os paredões que cercam Buraquinhos, os foliões “giram” por cemitérios, casas e sítios em homenagem a vivos e a mortos, ao que passou e ao que passará. Abaixo das montanhas, a manhã é úmida, mesmo com sol intenso. A luminosidade realça as cores do cerrado. Ao longo do caminho, surge vermelha, intensa, a caliandra, também conhecida por flor do diabo e ciganinha. Formada por dezenas de cerdas finas, semelhante a uma vassourinha, nasce em terras secas, entre pedras e areia. À noite, se fecha. Arrancada do chão, resiste por poucos minutos.

Pelo caminho se encontra um pau-d’arco, árvore baixa, frondosa e retorcida, carregada de folhas amarelas. Um olhar mais atento permite ver centenas de flores e fungos minúsculos de formas e cores variadas. Pequenas orquídeas, lá chamadas de sumarés roxas, azuis, lilases e rosas, cordão-de-são-francisco – flores laranjas encravadas e um núcleo espinhoso –, amor-em-balança – uma flor branca, em calda. Longe dos mais velhos, os jovens seguem cantando versos. “Morena o seu bico caiu, deixa que eu apoio ele pra você”, diz um deles. “Não, não, não, não posso vender o colchão/ Minha mulher não pode dormir no chão”, destaca outro. “Em cima daquela serra, eu vou pilar café/ Abre a roda menininha, que papai não quer.”

Comentar

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

Publicidade
Publicidade

Copyright ® 1999-2024 Notibras. Nosso conteúdo jornalístico é complementado pelos serviços da Agência Brasil, Agência Brasília, Agência Distrital, Agência Estadão, Agência UnB, assessorias de imprensa e colaboradores independentes.