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Irã, terra dos aiatolás e potência emergente de muitos doutores

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Qual país conta com mais ministros com doutorados de universidades americanas do que o governo de Barack Obama? A resposta correta é a República Islâmica do Irã. E, não, essa lista não inclui o presidente Hasan Rouhani. Ele obteve seu doutorado pela escola de direito da Universidade de Glasgow.

Há poucos países no mundo sujeitos a tanto preconceito e incompreensão ocidental quanto o Irã. Eu conheço o país desde a época dos xás e o visitei mais de uma dúzia de vezes nas últimas quatro décadas, incluindo uma visita recente.

Eu me lembro de me sentar em uma casa de chá em Shiraz, no túmulo do grande poeta Hafez, que era altamente admirado por Goethe, entre almofadas confortáveis e fumando um narguilé, fazendo anotações de quão desastrosamente o xá avaliou o sentimento da população e quão brutal era seu serviço secreto, o Savak. E me recordo de como as massas receberam o aiatolá Khomeini como seu salvador, quando este retornou do exílio em 1979, e como celebraram a Revolução Islâmica.

Mas também observei quão rapidamente essas ilusões foram destruídas com a ascensão de uma ditadura nova e ainda mais sangrenta em nome de uma teocracia que travava uma batalha contra o “Grande Satã” (os Estados Unidos) e o “Pequeno Satã” (Israel). Eu observei quão impiedosamente a insurreição promovida em 2009 pelos filhos da revolução foi esmagada. Lembro de quão tolo o ex-presidente Ahmadinejad foi em sua negação do Holocausto. Então, em 2013, assisti a eleição do presidente moderado Rouhani, aumentando a possibilidade de uma reaproximação com o Ocidente.

O Irã de hoje mudou dramaticamente. Em cidades mais liberais como Shiraz e Isfahan, jovens empreendedores abriram pequenos café e “The Times They Are a-Changin” de Bob Dylan se tornou a canção favorita. Jovens estudantes dão aos mãos em público e as mulheres puxam para trás seus lenços de cabeça obrigatórios a ponto de seus cabelos serem visíveis (um ato proibido). Turistas são bem-vindos em toda parte e são tratados com hospitalidade.

Com a exceção de Israel, dificilmente há outro país no Oriente Médio onde o sentimento pró-Ocidente seja tão pronunciado como no Irã. Milhões de jovens frequentam a universidade. E apesar das mulheres ainda serem discriminadas – as leis limitam os direitos delas de divórcio e custódia dos filhos, além de também estipularem que já podem ser processadas a partir dos 9 anos, em comparação a 15 anos para os meninos – elas vivem com mais liberdade aqui do que em muitos países da região. Com a ajuda de antenas parabólicas ilegais, mas fáceis de instalar, que podem ser encontradas em toda parte, eles também têm acesso aos programas de notícias ocidentais.

A apenas poucas centenas de quilômetros a oeste daqui, radicais islâmicos fanáticos criaram um califado no Iraque e na Síria. No Irã, entretanto, o papel da religião está em declínio. As pessoas aqui consideram os mulás corruptos e são objeto de desprezo. Amigos me disseram para evitar ficar ao lado de um clérigo usando turbante e túnica quando chamar um táxi. Segundo eles, os motoristas não param. E apesar de muitas mesquitas estarem vazias, as catedrais de consumo do país, os novos shopping centers, estão lotadas. O pensamento coletivo atualmente é ridicularizado e o individualismo está em voga.

A desilusão, é claro, não é nova. Já em 2003, o grão-aiatolá Hossein Ali Montazeri, um ex-companheiro de armas de Khomeini que posteriormente foi colocado sob prisão domiciliar como membro da oposição, reconheceu abertamente esse fracasso durante um encontro que tive com ele em Qom. “Devido aos nossos excessos nós perdemos o respeito do mundo –e meus sonhos estão mortos”, ele disse. “O líder religioso deve limitar seu papel aos deveres representativos – e é isso o que acontecerá.”

Mas Montazeri estava errado. Não há uma tendência perceptível no Irã sugerindo uma mudança para uma monarquia constitucional, muito menos uma democracia. Mesmo hoje, o sistema de governo do Irã, com Ali Khamenei na posição mais alta como uma autoridade acima do presidente e do Parlamento, não parece seriamente ameaçada. Após o esmagar dos protestos há quase seis anos, poucas pessoas continuam acreditando que a política pode ser mudada por meio de manifestações. Em vez disso, elas aproveitam a pequena quantidade de liberdade que têm em parques públicos e galerias. Dentro de seus lares, entretanto, eles festejam de modo exuberante em uma vida privada paralela.

As cidades sofrem sob constantes congestionamentos e, ao menos à primeira vista, não parece que as pessoas estão vivendo na miséria. Apesar das sanções, o padrão de vida e as oportunidades de compras são mais comparáveis a Madri do que Havana. Um número notável de novos shopping centers está atualmente em construção, com nomes como Palladium ou Mega Mall, e é possível ver Porsches estacionados na frente. A classe alta não parece estar sofrendo muito com os gargalos econômicos.

Muitos no Ocidente têm uma imagem monolítica do Irã, mas essa não é a realidade. O Irã é um país com diversos centros de poder que veem uns aos outros com suspeita. O governo eleito frequentemente não sabe o que a Pasdaran, a poderosa organização paramilitar, está fazendo. E a Guarda Revolucionária, que Khomeini, o fundador da teocracia, criou para sua própria proteção, hoje está muito melhor armada que o próprio exército e se tornou algo como um Estado dentro do Estado.

A Guarda Revolucionária também financia muitos dos novos shopping centers e seu poder econômico se tornou um problema tão grande para o presidente moderado quanto sua proeza militar. A Guarda Revolucionária simboliza o outro Irã mais ameaçador. Ela controla as exportações e o programa nuclear do país. Usando a milícia Basij, que a Guarda Revolucionária emprega como sua força policial não oficial, ela persegue os manifestantes. E não se envergonha de realizar atos terroristas no exterior com sua Força Quds. Ela costuma ser hostil em relação a Rouhani, que às vezes retalia. Recentemente, por exemplo, ele ameaçou dar voz ao povo na forma de um referendo –uma provocação contra a Guarda Revolucionária, mas também uma afronta ao líder religioso.

Diferente dos Pasdaran ricos em contatos, os iranianos “normais” foram atingidos pelo declínio econômico do país. Durante 2012 e 2013, o produto interno bruto encolheu consideravelmente, a moeda nacional, o rial, sofreu forte desvalorização frente ao dólar e a inflação está alta. A longo prazo, o país, que depende das exportações de petróleo, é ameaçado por cortes profundos em seu sistema social. Para cobrir as necessidades orçamentárias do governo, o preço por barril de petróleo deveria ser de US$ 130, mas nos últimos meses não chega nem à metade disso.

Além disso, os iranianos também estão ultrajados com as numerosas sentenças de morte executadas e sofrem com as restrições impostas à liberdade de imprensa e cultura. É especialmente doloroso para eles quando um filme como “Táxi”, do diretor Jafar Panahi de Teerã, ganha o principal prêmio no Festival de Cinema de Berlim, mas não pode ser exibido nos cinemas domésticos. As pessoas estão insatisfeitas com seus líderes políticos, o que faz muitos se tornarem cínicos. Até o momento elas poupam o presidente que elegeram das piores críticas, mas ele precisará apresentar resultados em breve e melhorar o padrão de vida delas.

Mais que qualquer outra coisa, Rouhani precisa concluir o acordo nuclear. A indústria iraniana está ávida pelo fim das sanções, para que possa novamente avançar e parceiros ocidentais também desejam entrar no mercado iraniano. Em muitos casos, contratos preliminares para empreendimentos conjuntos na fabricação de automóveis e até mesmo na exploração de novos campos de gás e petróleo já estão nas gavetas, apenas aguardando pelas assinaturas.

Mas há uma coisa que liga todos os iranianos, independente de suas inclinações políticas: o orgulho por sua própria cultura e o medo de que o país seja humilhado. As crianças em idade escolar iranianas aprendem que a história persa está no mínimo em pé de igualdade com a de Roma ou Atenas – e que sua civilização estava muito à frente das dos vizinhos árabes do Irã. Alexandre o Grande, visto como um lendário conquistador no Ocidente, é tratado como um criminoso aqui, por ter destruído patrimônios culturais.

Ao mesmo tempo, as pessoas gostam de apontar que é óbvio que o conquistador do mundo se estabeleceria na Pérsia e se casaria com uma de seus belas mulheres como ele fez. É um exemplo perfeito do que o autor Hooman Majd chama de “nosso complexo de superioridade”.

É um elemento do paradoxo persa que esse sentimento ande de mãos dadas com um senso de profunda incerteza. Eu fui confrontado repetidas vezes durante minhas visitas ao Irã com a queixa de que o Ocidente não se importa com a história e cultura iraniana. As pessoas se queixam de que devido a essa ignorância, o Irã é tratado como um Estado de terceira classe e nem mesmo concedem ao país seus direitos segundo a lei internacional.

A classe política em Teerã conseguiu com sucesso casar essa convicção geral a um problema muito específico – a questão do Irã como potência nuclear. Durante todo o tempo os políticos agiram como se o mundo estivesse conspirando contra o Irã – como se o conflito fosse sobre a “dignidade” do Irã, não a respeito da suspeita justificada de que o país estava produzindo uma bomba nuclear.

Quase todo político iraniano, incluindo os ex-candidatos presidenciais Mir Hossein Mousavi e Mahdi Karroubi, que ainda permanecem sob prisão domiciliar, destacam o direito do país de realizar pesquisa científica da energia nuclear. Na opinião deles, isso também inclui o direito de enriquecer urânio. É uma visão também compartilhada pela maioria da população. Diferente de Israel, eles argumentam, o Irã é signatário do Tratado de Não Proliferação Nuclear. E iranianos entrevistados apontam com frequência que o Estado judeu conta com mais de uma centena de armas nucleares à disposição. Especialistas ocidentais colocam esse número em 80.

O presidente americano Barack Obama buscou se adaptar a Teerã e suas sensibilidades. Ele reconheceu que a participação da CIA no golpe de 1953 contra o primeiro-ministro liberal Mohammed Mossadegh foi um erro histórico. Ele também parabenizou o Irã por seu feriado de ano novo, Nowrus, chamando o país de uma “grande civilização”, e escreveu várias cartas pessoais ao líder supremo Khamenei.

Apesar de todas as suas diferenças, parece que o secretário de Estado, John Kerry, está mais à vontade negociando com seu tranquilo par iraniano, Mohammad Javad Zarif, que estudou direito internacional em Denver, do que com seu par israelense mais rude, Avigdor Lieberman. E o secretário de Energia americano, Ernest Moniz, o ex-chefe do corpo docente de física no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), parece se dar muito bem com Ali Akbar Salehi, o segundo na hierarquia da delegação iraniana. Não é de se estranhar, dado que Salehi se formou pelo MIT.

Se as negociações nucleares fracassarem, Teerã as condenarão como sendo uma humilhação. Em seguida eliminará quaisquer restrições e empregará toda sua energia no esforço para obter uma bomba nuclear. Ele usará o orgulho nacional como argumento para obrigar suas pessoas a perseverar durante os tempos difíceis.

Em uma entrevista para a “Spiegel” em 2012, Salehi – o ex-ministro das Relações Exteriores, que agora é o chefe do programa nuclear do Irã – disse: “Por mais de 30 anos, nós vivemos sob medidas de boicote que, no final, nos tornaram mais independentes e mais fortes. A sociedade iraniana está acostumada a viver sob dificuldades – talvez mais do que as populações na Espanha ou Grécia. Nós podemos contar com a paciência de nosso povo. E quanto a vocês na Europa?”

Erich Follath, Der Spiegel

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