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Leila Maria, a negra brasileira que ressuscitou voz de Billie Holiday

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Antonio Gonçalves Filho

Em 2015 alguns discos memoráveis foram lançados em homenagem ao centenário da cantora norte-americana Billie Holiday (1905-1959), entre eles o experimental Coming Forth by Day, de Cassandra Wilson, que teve até participação da banda de Nick Cave. O Brasil esteve representado com um CD à altura.

Leila Maria canta Billie Holiday in Rio, que, a exemplo de Cassandra Wilson, não buscou imitar o inimitável (a voz, o fraseado e a dinâmica de Billie), o que diferencia a cantora carioca de outras intérpretes que foram por esse caminho (Madeleine Peyroux, para ser mais específico). Com três discos gravados antes desse, Leila é ainda uma cantora cult, como Patricia Barber, mas dona de uma voz poderosa. Além disso, tem inglês perfeito, o que vai facilitar sua carreira internacional

É possível que essa carreira comece antes mesmo que se esgote a edição de seu disco. Ela revela que deve viajar em breve para Nova York com sua produtora, Lygia Marina de Moraes, a musa que inspirou o compositor e amigo Tom Jobim a compor a famosa canção com seu nome. Lygia tem larga experiência como educadora (foi professora de Beth Jobim, filha do maestro, e dirigiu a Casa de Cultura Laura Alvim).

Tem também um ótimo ouvido musical, a julgar pela escolha de Leila, que gravou o disco como tributo a Billie Holiday por insistência de um fã, o empresário paraense Pedro Lazera, dono de uma rede de farmácias no Norte e Nordeste, que não poupou recursos para produzir o CD com sete arranjadores – entre eles Cristóvão Bastos e Paulo Midosi – e um time de 40 músicos.

Prêmio – O paraense Lazera, por acreditar no potencial de Leila Maria, encomendou 5 mil CDs que pretendia comercializar nas farmácias da rede Imifarma. O disco ficou pronto em 2012, mas as cópias não saíram das caixas. O empresário morreu de um enfarte. Antes, a cantora ganhara de presente algumas cópias e distribuiu os CDs entre amigos, um deles José Maurício Machline, idealizador do Prêmio da Música Brasileira. Em 2014, Machline inscreveu o disco à revelia da intérprete, que ganhou na categoria “melhor álbum em língua estrangeira”. Foi necessário aguardar a conclusão do inventário de Lazera para que a gravadora Biscoito Fino entrasse no processo de distribuição e lançasse o CD, que chegou às lojas em dezembro.

Valeu a espera. Leila Maria canta no disco 13 músicas consagradas na interpretação de Billie Holiday, entre elas Love me or Leave Me, Easy Living, Good Morning Heartache, You’ve Changed e God Bless the Child. Já numa primeira audição é possível perceber a singularidade da interpretação da brasileira Ela não imita a entonação profunda da mais influente cantora do jazz simplesmente por não ter passado pelas mesmas experiências – Billie, filha de dois adolescentes, foi abandonada, estuprada, virou prostituta e ficou viciada em heroína. “Billie, inimitável, teve essa experiência, eu tive a minha, a despeito dos preconceitos que sofremos como mulheres negras.”

A melhor – Filha de um oficial da Marinha Mercante, Leila Maria teve a sorte de conhecer a música de Billie Holiday ainda criança. O pai trazia discos de todas as viagens que fazia. “Lembro que fiquei arrepiada quando ouvi pela primeira vez Am I Blue?”, conta. Filha do meio, espremida entre dois irmãos, a menina, nascida na Tijuca e criada em Madureira, era, segundo a própria definição, “a ovelha mais negra da família”.

Sem tradição musical que justificasse sua escolha, Leila não foi estimulada a cantar. “Meu pai gostava de Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan, mas dizia que Billie Holiday tinha voz de rato.” Uma lição, porém, ela aprendeu cedo: “Ele me alertava que, sendo negra e mulher, eu teria de ser a melhor na profissão que escolhesse”.

Ela tentou estudar jornalismo, depois serviço social, mas a música foi mais forte. Por sorte, a família, de classe média, era proprietária de uma vila de casas no subúrbio carioca e Leila Maria, para nosso prazer, insistiu. Antes, trabalhou em diversos lugares e deu aulas de inglês. Por insistência dos amigos, cantava em casas tradicionais do Rio como o Mistura Fina ou na loja de discos Modern Sound, atuando ainda como convidada da banda do saxofonista Paulo Moura.

Há 19 anos, uma gravadora que não existe mais, a GPA, contratou-a para gravar o primeiro disco, Da Cabeça aos Pés (1997), em que já se mostrava ousada, cantando Cole Porter (Get Out of Town). No disco seguinte, Off Key, ela retomava clássicos da bossa nova (Desafinado, Dindi) em inglês. No terceiro disco, temático, Canções de Amor de Iguais, como indica o título, ela faz o elogio da diversidade, cantando de Nature Boy (Eden Ahbez) a Sexuality (K.D. Lang), passando por Gatas Extraordinárias (Caetano Veloso), que ficou marcada na voz de Cássia Eller.

Samba – O repertório pode soar estranho por não incluir samba, mas há uma explicação. Leila não quer ser reduzida ao estereótipo da sambista animada só por ser negra. Está, sim, empenhada em gravar sambistas no futuro, mas algo de acordo com seu timbre e sofisticação. Ela não gosta de barulho. Em casa ouve Mozart, Bach. “Há ainda muito preconceito no Brasil e, se Billie tivesse nascido aqui, certamente não teria sido Billie.”

A discriminação racial era – ainda é – muito grande nos EUA, mas as cantoras negras americanas, lembra, tiveram a sorte de nascer no país do show business, onde não importa a cor de quem entra no palco ou grave, desde que venda. “Eu não vou carregar essa bandeira contra o racismo, não quero ser rotulada”, diz. Tampouco quer ser a “cantora das minorias”, por ter gravado um disco sobre o amor entre iguais. Música boa não tem fronteira. Os alemães estão ouvindo Off Key e adorando. Leila Maria quer reaver os direitos dos seus primeiros dois discos fora de catálogo para conquistar outros povos. Com sua voz, não vai ser difícil.

estadao

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