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Racionamento de energia vai sair da teoria para virar realidade?

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A relação entre São Pedro e a chuva tem origem na Itália medieval. Quando havia uma seca, a população carregava a estátua dele em procissão. Se não chovesse, a estátua era jogada no leito (presumivelmente seco) do rio mais próximo, acompanhada de insultos. Dada a situação calamitosa de nossos reservatórios de água e das hidrelétricas, a culpa é do santo?

A resposta a esta pergunta é bem diferente do que tem saído na mídia. Mostraremos a seguir que a crise de água foi, de fato, causada por uma seca severa. No entanto, e surpreendentemente, a crise de energia não tem relação com qualquer mau humor de São Pedro. Ou seja, na Itália medieval o santo seria jogado num dos reservatórios do sistema Cantareira. Porém, não nas hidrelétricas.

Para entendermos a afirmação acima, é importante lembrar que, tanto no caso da água como da eletricidade, dispomos de “cadernetas de poupança” hídrica, que são imensos reservatórios. Isto significa que a verdadeira causa da crise atual não é o fato de janeiro e fevereiro de 2015 terem sido os meses mais secos da história, e sim o fato dos reservatórios terem esvaziado progressivamente desde janeiro de 2012 até dezembro de 2014, quando chegaram ao pior nível da história. A seca recente é apenas a (falta de) gota d”água que desequilibrou um sistema que ficou vulnerável devido à perda da reserva hídrica.

Portanto, a verdadeira questão é: por que os reservatórios esvaziaram tanto nos últimos três anos? À primeira vista, a resposta é óbvia: porque o volume de água que chegou aos mesmos neste triênio foi o pior, ou um dos piores, da história. No entanto, esta resposta não é verdadeira no caso do setor elétrico.

Se compararmos as vazões que chegaram às hidrelétricas no triênio 2012-2014 com as dos 81 triênios do passado (1931-1933; 1932-1934; e assim por diante, até os tempos atuais) verificaremos que em 15 destes triênios ocorreram secas piores do que a atual. Em outras palavras, as vazões destes últimos três anos nem de longe podem ser consideradas como muito desfavoráveis.

Dado que o setor elétrico é planejado para não ter problemas mesmo com o pior triênio da história, conclui-se que atender o 16º pior triênio deveria ter sido “mamão com açúcar”. No entanto, sabemos que isto não ocorreu: apesar de gastarmos dezenas de bilhões de reais com geração termelétrica nos últimos anos, os reservatórios esvaziaram sem parar. Isto leva à segunda pergunta: por que os reservatórios esvaziaram e estamos todos, com razão, preocupados com a possibilidade de um racionamento de energia?

Uma possível resposta seria: porque o consumo de energia foi exagerado, devido à combinação de temperaturas elevadas, ar condicionado e desperdício de energia. Assim como no caso da hidrologia, esta resposta é plausível, porém incorreta.

A razão é que, devido às dificuldades econômicas do país, o consumo observado nestes últimos três anos foi inferior ao previsto nos estudos de planejamento. Também é importante observar que o desperdício de energia é incorporado nos estudos de planejamento, pois as previsões de demanda devem sempre ser realistas. Apesar de ineficiente e condenável, o desperdício, por si mesmo, não pode causar uma crise de energia ou de água.

Dado que a hidrologia não foi malvada e a demanda foi medíocre, a única explicação que sobra – a verdadeira – é que a capacidade de geração real é menor do que se pensava, devido a falhas no planejamento de construção das usinas e das linhas de transmissão.

Esta insuficiência estrutural foi demonstrada em diversos estudos técnicos. Por exemplo, da PSR, Academia Nacional de Engenharia (ANE) e Tribunal de Contas da União (TCU), que recentemente fez uma série de questionamentos ao Ministério de Minas e Energia.

Dado que a origem da crise de energia está esclarecida, vamos tratar da água. O resultado do mesmo tipo de comparação entre o último triênio de vazões afluentes ao sistema Cantareira com os triênios do passado leva a um resultado totalmente oposto ao da energia: as vazões do último triênio são muito piores do que as do passado.

A última pergunta seria: qual é a razão para uma diferença tão grande entre as vazões dos setores de água e eletricidade? A explicação é a mesma entre um investidor que compra as ações de uma única empresa e outro que tem uma carteira de ações diversificada.

No caso da Cantareira, São Pedro precisa caprichar na pontaria e acertar a área de drenagem contribuinte ao reservatório, que é uma pequena fração do território nacional. Não é possível usar a água que cai no lugar “errado” (por exemplo, a que tem inundado a cidade de São Paulo) para o abastecimento.

Já no caso do setor elétrico, se não chover na região Sudeste, mas chover na região Sul, ou Norte, não tem problema, pois é possível usar a extensa rede de transmissão que interconecta todo o país para transferir energia de um lado para outro.

Adicionalmente, é importante observar que, embora o governo federal tenha falhado mais do que o governo de São Paulo no que se refere ao planejamento dos respectivos sistemas de energia e água, a gestão da crise de água por parte da Agência Nacional de Águas e do governo paulista em 2014 poderia ter sido muito melhor.

Faltou desestimular o uso de água bruta (não tratada) para a irrigação, que compete com o abastecimento das cidades, e compartilhar claramente com a população a necessidade de economizar o uso de água tratada.

Finalmente, gostaríamos de encerrar este artigo com a seguinte reflexão. Todos nós cidadãos sabemos que às vezes as coisas saem muito errado por causas externas – como nas crises cambiais, por razões institucionais e políticas, como na hiperinflação, ou por falhas de planejamento, como no racionamento de 2001.

A reação magnífica da população em todas estas crises torna imperdoável que não se aprenda com os erros cometidos. Na situação atual, mesmo que as crises de água e energia sejam aliviadas “aos 48 minutos do segundo tempo” pela combinação de medidas heroicas e de boas chuvas, é fundamental que a má experiência contribua para o fortalecimento da cidadania.

Para isso, os governos devem ser mais sinceros, compartilhando suas preocupações com a sociedade. Já a imprensa deve ser mais justa, avaliando as decisões tomadas sob incerteza com base nas informações disponíveis na ocasião em que foram feitas, e não a partir dos resultados. E a população deve confiar mais nos técnicos do que nos marqueteiros.

Mario Veiga e Rafael Kelman

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