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De volta para casa

Rael, jardineiro, deixa as flores para matar as saudades

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O jardineiro Rael Rodrigues Teixeira, de 25 anos, decidiu juntar o dinheiro que ganhou em oito anos de trabalho nos condomínios e prédios de Brasília para voltar, no ano passado, para sua cidade, Chapada Gaúcha, no norte mineiro, a 345 km do Distrito Federal. “Tinha saudade demais do pai e da mãe”, diz.

O setor da construção civil em Brasília vive um momento de estagnação. Dados do Ministério do Trabalho e Emprego indicam que, nos últimos dois anos, houve redução de postos de trabalho com carteira assinada, após 13 anos de aumento da oferta. Ao longo de 2016, 2 mil vagas foram fechadas por mês, em média.

Rael e um primo alugaram um cômodo e estão montando um pequeno lava-jato no centro do município. Por enquanto, sobrevive com o salário de R$ 1,2 mil de um trabalho como guarda no Parque Grande Sertão Veredas. “Por ora, não volto pra Brasília”, diz, num misto de incerteza e vontade de ficar.

É ele quem sugere visitar a comunidade de Buraquinhos, onde moram seus pais e irmãos. “Vocês vão encontrar uma folia. A gente brinca lá. Meu pai é o alferes, um dos comandantes. Sou filho de João Grilo.” O nome do povoado, um reduto de descendentes de escravos, faz referência a buracos cavados no bico por araras vermelhas, para fazer ninho nos paredões de arenito que cercam a comunidade.

Nos 40 km de estrada de terra até Buraquinhos, Rael relata que no início achou Brasília o “máximo”. “Na verdade, Brasília é uma cidade violenta”, conta. Ele morou em Ceilândia e São Sebastião, cidades da periferia do Distrito Federal. Trabalhou em reformas de quitinetes e, depois, nos jardins de um conjunto do Programa Minha Casa Minha Vida. E perdeu conhecidos para a criminalidade, a maioria por envolvimento em drogas. “Um primo, o Jivanildo, foi assassinado em São Sebastião. Ele reagiu a um assalto”, relata. “Antes de vir pra cá, dois homens levaram meu celular e minha carteira. Deu um trabalho danado tirar de novo os documentos.”

Ao longo do caminho, uma vasta área plana está coberta pela soja. Foi ocupada por empresários gaúchos nos anos 1970, com patrocínio do regime militar. O lugar pertencia ao município de São Francisco. Em 1994, a comunidade gaúcha conseguiu a emancipação. A soja ficou no plano do alto dos platôs, não desceu o Vão do Buraco, um vale de arenitos de argila nas cores amarela, laranja, branca e vermelha.

O desinteresse dos gaúchos pelas terras de baixo garantiu a preservação de veredas, matas e boa parte do Rio Pardo, um dos cursos citados no Grande Sertão: Veredas. As formações de argila dão um aspecto único ao lugar.

Em Buraquinhos, Rael muda de semblante. É entre veredas, rios e precipícios que o jardineiro diz se sentir realizado. “Tempo de folia é muito bom. A gente fica no grau e percorre a região, casa por casa, emenda dia e noite.”

Paramos no boteco do Pedrinho. Uma chuva começa a cair. Depois, chegam os primeiros homens a cavalo para participar da folia. Com um chapéu branco de aba, Deodato Ferreira da Silva, de 55 anos, o Dió, veio do povoado da Aldeia, a 10 km. Logo em seguida chega Jivaldo Pereira dos Santos, de 57, morador do Buraco, mais acima. Ele é o organizador da folia. “Quando era criança, meu pai me colocava em cima do cavalo para participar da folia”, lembra. “De noite, quando chovia, me amarrava com uma toalha na sela do burro para eu não cair.”

Jivaldo viveu 11 anos em Brasília, onde atuou como pedreiro e chacareiro. Mesmo não deixou de organizar a festa dos Santos Reis no Buraco e no Buraquinhos. Nos últimos anos, passou as “tabelas” – letras de músicas da folia – a Isaías Ferreira da Hora, de 39 anos. “Se eu for antes do seu Jivaldo, ele continua a tradição. Se ele for antes de mim, eu continuo.” Jivaldo se emociona e chora.

A folia começa na casa de um morador a uns 7 km do bar do Pedrinho. Até lá, é preciso atravessar de carro quatro vezes o Rio Pardo, que serpenteia as formações de arenito e o cerrado. O solo é seguro, não afunda o carro. Na primeira noite da folia, um senhor de corpo robusto, atarracado, se sobressai. É João Grilo, pai de Rael. João José Teixeira, de 65 anos, exibe a bandeira de pano com os desenhos dos reis magos. “Fui para Brasília garoto trabalhar na construção daqueles prédios. A cidade tinha só 7 anos”, lembra. “Quem trabalha movimentando massa de cimento convive com todo tipo de gente. Sei como é o rosto de homem de bem e o de ladrão.”

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