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Um depoimento

Renato desarmou armadilhas, menos a da saúde

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Paulo Ricardo

Éramos uma turma animada, na ECA-USP, onde eu fazia jornalismo. Antenada. A nova música fluía. Danceterias, festivais, fanzines, fitas cassete, shows, shows, muitos shows!

Milhões de bandas, alinhadas com o que estava acontecendo na Inglaterra, criavam uma cena abrangente, instigante, que prometia a qualquer momento explodir o mainstream. Uma festa para o rock brasileiro, esse período de 1982, 1983, 1984!

Numa dessas manhãs, minha amiga Patricia Andrade, estudante de rádio e TV (foi dela a sugestão do nome RPM), me disse: “Vamos ao Centro Cultural Vergueiro no domingo? Vai ter uma banda de Brasília que tem umas letras legais, tem uma que diz ‘uma menina me falou’. E aí ele responde. Tipo um diálogo, sabe? Bem interessante!”

Fomos conferir. Algumas dezenas de gatos e gatas pingadas enfrentavam a garoa para conferir aquele trio que, realmente, tinha letras muito boas. Patricia era exigente.

Fui apresentado a eles e logo engatei um papo com o baterista Marcelo Bonfá, que disse ter ouvido a demo da nossa banda e que havia sentido uma influência de Comsat Angels [banda pós-punk inglesa de 1978]. Confirmei a influência (era mentira).

Já havia conhecido Dado Villa-Lobos com Fernanda, sua mulher e editora do fanzine “Spalt”, no Napalm [casa de shows em Santa Cecília, centro de São Paulo].

Mas o Renato intimidava. Anti-herói de barba espessa, óculos de grau, com uma intensidade quase carrancuda e ironia fina, baixista e vocalista como eu. Ele estava à vontade, num dia bom, o show tinha sido ótimo e o papo correu solto. Ele conhecia meu passado de jornalista para a editora Som Três. Foi amizade instantânea.

As letras do Renato se destacavam pelo lado coloquial, pela sensibilidade de tratar de temas complexos e profundos com uma simplicidade e um frescor que, logo de cara, desarmava a armadilha da pretensão e criava uma empatia imediata com o ouvinte.

No começo, ele era o punk, o inconformista, o cara que não ligava para imagem e não gostava de videoclipes, mas que, segundo ele, queria que sua banda fosse uma mistura de Bob Dylan e Duran Duran.

Havia uma certa preocupação entre os mais chegados sobre como o público reagiria quando ele saísse do armário. Quando ele o fez, influenciado por Cazuza, isso só o engrandeceu.

Em 1986, tínhamos acabado de tocar no Gigantinho, em Porto Alegre, e fomos vê-los numa danceteria. Subimos ao palco e, juntos, RPM e Legião, fizemos “Será” e “Rádio Pirata”. Inesquecível.

Numa noite de 1987, eu, Renato e Cazuza nos encontramos numa boate em Ipanema chamada Barão com Joana. Ficamos uns vinte minutos pulando abraçados, uivando em nome da amizade e do sucesso do rock brasileiro.

Em fevereiro de 1996, Renato cantou comigo “A Cruz e a Espada” no meu CD “Rock Popular Brasileiro”. Meses depois, foi vencido pela Aids. Foi como se não houvesse amanhã.

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