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Cítera e Santa Rosa

Viagem inusitada pelo modernismo de Nelson Felix

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Autor/Imagem:


Antonio Gonçalves Filho

Esta é uma daquelas viagens imperdíveis – e evocativa da peregrinação à mítica ilha grega de Cítera descrita por Baudelaire em seu conhecido poema Un Voyage à Cythère, em que o precursor do simbolismo fala de um lugar triste e sombrio. Nessa terra inóspita, onde antes uma Vênus reinou nua e soberana, Baudelaire viu um tropel de bestas e um enforcado sendo devorado por aves de rapina. Igual sentimento de exílio e desconforto deve ter dominado o espírito do escultor Nelson Felix quando, animado por outro poeta francês, Mallarmé, jogou dados sobre um mapa-múndi para decidir qual seria sua nova rota de viagem e eles caíram justamente sobre Cítera.

Isso aconteceu há mais ou menos três anos. Nelson Felix, viajante contumaz, jogou os dados com o número seis em todas as faces, em data e hora estabelecidas. No outro extremo de Cítera surgiu Santa Rosa, cidade argentina dos pampas que é um marco do ecoturismo, árida a seu modo, mas não uma paisagem rochosa, marcada pela erosão, como Cítera. Imortalizada numa tela de Watteau, ela inspirou não só poetas modernos como cineastas (o grego Theo Angelopoulos) e pintores contemporâneos – o brasileiro Jorge Guinle pintou uma de suas mais belas telas pensando no quadro do francês (O Embarque para Cítera, de 1718)

A ilha do Mar Egeu, que na Antiguidade teria abrigado um templo dedicado a Afrodite, é, naturalmente, apenas um pretexto para a exposição Variações para Cítera e Santa Rosa, aberta até dia 20 na Galeria Millan, que é toda poesia. Felix elege como ponto de partida o poema de Mallarmé, Um Lance de Dados Jamais abolirá o Acaso (1897), em que o poeta fala de um homem que joga dados num navio à beira do naufrágio. Como Mallarmé, que faz do número 7 uma representação do absoluto, o escultor expõe também sete esculturas em mármore de Carrara. Contudo, não se trata de uma obsessão, como no caso do francês, que faz desse número uma chave interpretativa de seu poema. Na mostra, o espectador está livre para viajar como quiser, desde que tenha curiosidade.

Por exemplo, numa peça de mármore em forma de cubo transpassado pela haste de uma roseira, elementos internos e estruturais do osso occipital (situado na parte inferior do crânio) só podem ser percebidos pelo espectador se ele passar as mãos sob a superfície lisa da figura geométrica, uma sensação quase erótica provocada por um bloco de mármore rigorosamente esculpido, que desorienta e encanta.

“Não uso o mármore só por causa da tradição, embora esteja inserido nela e não veja problemas em reverenciar os renascentistas”, diz Felix, que tem entre suas cidades preferidas Florença, para a qual viaja com frequência quando vai a Carrara (são pouco mais de 90 quilômetros de distância). A inteireza do bloco de mármore que ele transformou em osso occipital faz lembrar inevitavelmente a luta dos artistas do Renascimento italiano, especialmente Da Vinci, para construir tridimensionalmente os ossos – inclusive o occipital – a partir de seus desenhos.

Vale lembrar que Felix é também um excelente (e obsessivo) desenhista. Há na mostra 18 desenhos feitos nas várias etapas dessa viagem que incluiu não só Cítera como Santa Rosa e Paris (especialmente o café Closerie des Lilas, em Montparnasse, fundado em 1847 e frequentado pelos poetas que o brasileiro reverencia na exposição). Outros desenhos integram a mostra paralela em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). “Engraçado que tanto Mallarmé como Baudelaire frequentavam esse café de Montparnasse”, observa Felix, revelando que se deixou impregnar pelo ambiente, assim como em sua peregrinação por Cítera, que atraiu tanto poetas (Nerval, Verlaine) como compositores, entre eles Debussy.

A música tem um papel fundamental na obra de Felix (em vários desenhos, ele presta tributo ao saxofonista Ornette Coleman, um dos inovadores do free jazz). Morando na serra carioca e isolado dos grandes centros, o escultor, que se formou em arquitetura, concebe suas obras sempre considerando o espaço em que serão inseridas. Há 32 anos, por exemplo, criou a obra Grande Budha (1985) em plena floresta amazônica, fazendo dela um campo aberto de experimentação escultórica, ao fixar garras de latão ao redor de uma árvore centenária, no Acre, que penetraria o tronco à medida que crescesse. Era, sim, uma violência, mas que tornou a árvore uma escultura singular na floresta. Em suma, um trabalho que incorporava tanto o conceito junguiano de individuação como do múltiplo caótico de Hermann Schmitz.

Acabou esse embate com a natureza. Essa “violência” transformou-se em hastes e espinhos (de metal) que atravessam as paredes da Galeria Millan. Criam uma nova dimensão espacial como as telas de Lucio Fontana que, perfuradas, revelam ao espectador uma constelação escondida atrás das incisões da obra. Há algo de erótico nesse ato de perfurar, assim como no desenho de Felix – e a mostra reúne inúmeras representações dos genitais nessa “viagem” ao redor do mundo. Mas, ao contrário de muitas outras obras de artistas contemporâneos, a poética de Nelson Felix não precisa de bula para ser entendida.

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