O esquisitão
Eram os deuses astronautas?
Eram, sim. E também uns sacanas de marca maior, dados a brincadeiras de péssimo gosto.
Tudo começou quando uma espaçonave transportando uns 20 extraterrestres penetrou na camada atmosférica da Terra e foi descendo, reduzindo sua velocidade, até pousar em um ponto qualquer do Oriente.
Não se sabe a origem deles, talvez outra galáxia, quem sabe outra dimensão. Mas é sabido por que vieram: fugiam do tédio, de uma vida apoiada em altíssima tecnologia, mas sem emoções. Os grupos terráqueos de caçadores-coletores os acolheram como deuses, e isso os animou um pouquinho.
– Vamos fazer essa tigrada evoluir! – propôs um deles.
Todos apoiaram a sugestão. Isso, pelo menos, os ocuparia por alguns dias. Pois ensina o Salmo 90, atribuído a Moisés, que sabia das coisas: “Porque mil anos são aos Teus olhos como o dia de ontem que passou”. E Pedro, no Novo Testamento, torna ainda mais clara essa correlação temporal humano-divina: “para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”. Assim, animados, morrendo de rir, os ETs manifestaram-se como divindades e seres fabulosos, primeiro na Suméria, em seguida no Egito, na Turquia, na China, na Índia…
É evidente que potestades sumérias como Anu, deus do céu, e Inanna, deusa do amor, da beleza e da guerra, ou o poderoso Hórus, deus da luz, protetor do faraó, tinham tempo mais que suficiente para se manifestar, na China, como o Imperador Amarelo ou como dragões (os ETs adoravam essas corporificações em animais fantásticos); e também, passados alguns dias – alguns milhares de anos – para contatar grupos nômades das Américas, divertindo-se com o temor reverente de todos eles diante da presença dos seres “vindos das estrelas”.
A verdade era que os deuses e deusas dos panteões recém-formados tinham muito a ensinar. Obrigaram grupos de caçadores-coletores a erguer aldeias, entregaram-lhes sementes e lhes disseram como e quando lançá-las no solo. Em seguida, reuniram diversas aldeias agrícolas nas primeiras cidades, transmitindo a uns poucos sensitivos – os xamãs, que logo dariam origem à burocracia sacerdotal – sua exigência de que construíssem templos, onde habitariam. Depois ensinaram os humanos a erguer grandes construções – zigurats na Mesopotâmia, pirâmides entre os egípcios, os indonésios, os chineses, os toltecas, os maias do México e América Central e a cultura Lima, dos Andes. Para não mencionar as construções megalíticas que pontilharam todo o mundo antigo, entre elas a britânica Stonehenge e as mais de três mil pedras erguidas em Carnac, na Bretanha: dólmens, menires e por aí vai. Ensinaram-lhes, embora, com sua tecnologia, pudessem erguê-las em poucos dias (dos humanos), pois não eram senhores benevolentes; sentiam, por e
xemplo, um prazer maligno com os sacrifícios humanos com que os sacerdotes buscavam apaziguá-los. Além disso, um de seus passatempos favoritos era assistir ao florescer, ao declínio e à queda das civilizações que os reverenciavam, em meio a guerras sangrentas.
Mas houve um ET que seguiu um caminho diferente daquele de seus pares. Os companheiros de viagem chamavam-no de “esquisitão”, pois era bem mais reservado e tinha uma nítida aversão aos jogos sexuais que deliciavam os demais e, em especial, ajudavam a afastar o tédio. Ele também escolheu o “seu” povo: não uma gloriosa civilização da aurora da espécie humana e sim um punhado de pastores do atual Oriente Médio. E escandalizou todos os ETs, ao se negar a comparecer, sob outra forma, junto a grupos nômades americanos.
– Fico apenas com o meu povo, eleito por mim – declarou.
Outros aspectos dessa relação, digamos, monogâmica irritaram os demais “deuses”.
– Ele se revelou com um nome impronunciável! – declarou um deles. – Quatro consoantes, YHWH…
– O hebraico, idioma das tribos israelitas de que ele cuida, não tem vogais – esclareceu um deles, mais estudioso. – Essa coisa pode ser pronunciada de diversas maneiras, Yaweh, Javé, Jeová… E tem um belo significado metafísico, “Eu sou quem eu sou” ou algo assim.
– Pode ser – admitiram relutantes os turistas intergalácticos ou interdimensionais. – Mas é um absurdo ele ajudá-los em suas guerras. Nós deixamos nossos impérios florescerem e mais tarde desaparecerem, sem mover uma palha; ele conduz os israelitas à vitória, e gosta de ser chamado de “deus dos exércitos”.
– Ele usa nossa tecnologia nos conflitos desse planetinha!? – exclamou a egípcia Isis, indignada.
– O curioso é que não, ou só um pouco – explicou o babilônico Marduk, deus supremo da Mesopotâmia. – Perguntei-lhe, e me respondeu que deixa o essencial dos esforços com o “seu” povo. Só assim poderão, assegurou-me, se fortalecer.
– É mesmo um carinha muito estranho… – disse alguém. Todos concordaram.
Os ETs já estavam na Terra há quase 15 dias – quase 15 mil anos terrestres –, o tédio, feito um posseiro, ameaçava reinstalar-se em seu cotidiano. Decidiram então regressar a sua galáxia/dimensão ou descobrir um novo resort para suas férias, sem data pra terminar.
– Tá mais que na hora – insistiu o helênico Zeus. – Já não inspiro temor reverente, passaram a ver-me como arquétipo, encarnação do poder, da justiça… Chato pra cacete.
Antes, porém, fizeram uma última brincadeira de mau gosto. Visitaram todos os grupos que os adoravam, em especial os que mais recentemente haviam se tornado seminômades e agricultores, e prometeram-lhes regressar algum dia. Desde então, os pobres humanos passaram a olhar, esperançosos, para as estrelas, e a submeter-se aos sacerdotes e xamãs que afirmavam ter contato, por meio de seus rituais – e das oferendas entregues a eles pela tigrada devota –, com as divindades distantes.
Afinal, os ETs partiram. Todos, menos o esquisitão, que declarou aos companheiros:
– Vou ficar por aqui com o meu povo. Ele precisa de mim.
“E eu preciso dele”, poderia ter acrescentado.
Os outros deram de ombros, entraram na espaçonave e foram embora.
Só que talvez eles retornem, pois o tédio é uma pantera faminta. E então vão se cumprir todas as profecias, o choque entre os ETs/divindades será terrível. Pois Yaweh, o esquisitão, o inseguro, declarou em diversas passagens bíblicas ser um deus ciumento, que não admite que outras potestades disputem com ele pelos corações e mentes de seu povo.
