No coração do domingo, quando a casa se enche do aroma quente de pão assado e do murmúrio das vozes que se cruzam, a reunião de família é um tecido vivo, costurado com risos, histórias repetidas e silêncios que dizem mais que as palavras.
Mas ali, entre os pratos fumegantes e o tilintar das taças, há uma cadeira vazia, um vazio que não explica, mas canta, um canto baixo, melancólico, tecido na trama fina da saudade. Essa cadeira não é apenas madeira e ausência; é um verso inacabado, um poema que a saudade escreve com tinta invisível, e que a alma lê com o peso do que já não volta.
A cadeira, posta no canto da mesa, parece um altar onde a família deposita, sem querer, seus silêncios mais profundos. É a cadeira da avó Maria, que já não está, mas cujo riso ainda ecoa quando alguém conta uma piada antiga. “Ela fazia o melhor bolo de laranja”, diz a tia, com os olhos úmidos, e o silêncio que se segue é um verso que todos conhecem. A saudade, ali, é uma poesia que não precisa de palavras: é o cheiro de laranja que não sai da memória, o jeito que ela ajeitava o guardanapo, o vazio que o bolo quente não preenche.
A cadeira guarda Maria, não em carne, mas em ausência — e a saudade, como um poeta cego, tece versos com o que resta.
Mas a cadeira não é só dela. É também o lugar da prima Minervina , que cruzou o oceano em busca de um futuro que a cidade não dava. Ela aparece em chamadas de vídeo, com um sorriso que não esconde a distância, mas, na mesa, sua cadeira permanece vazia, um lembrete de que a saudade não é só da morte, mas da vida que se transforma.
É o espaço do tio Jorge, que se afastou depois de uma briga que ninguém mais lembra por quê, mas que deixou um silêncio que pesa mais que a mesa cheia. Cada um, ao redor, olha para a cadeira e vê uma saudade diferente: uma memória, uma mágoa, um “e se” que não se diz. A cadeira é um espelho, refletindo o que o coração não ousa nomear.
A poesia da saudade, que dança na cadeira vazia, é feita de silêncios que falam. É o espaço entre as palavras, o instante em que o riso da família hesita, o momento em que alguém pega o garfo e para, olhando o vazio como se pudesse enxergar quem já não está.
É uma poesia que não rima, mas ressoa no tilintar de uma colher que lembra o jeito dela, no cheiro do café que ele tomava, na história que só eles contariam. A saudade não é apenas perda; é presença, é o que fica quando o corpo se vai, mas a alma insiste em permanecer. E a cadeira, com seus arranhões de outros domingos, é o papel onde essa poesia se escreve, linha a linha, ausência a ausência.
Enquanto a família come, ri, discute o jogo de ontem, a cadeira vazia sussurra: “Lembrem-se, mas sigam.” E a saudade, como uma poeta incansável, continua seu ofício, tecendo versos nos gestos simples na mão que ajeita o prato, no olhar que escapa para o canto, no suspiro que ninguém explica.
É uma poesia que não consola, mas abraça; não resolve, mas acolhe. Porque a saudade, na sua essência, é um amor que não cabe no tempo, um verso que não termina, uma cadeira que, mesmo vazia, nunca está só.
Quando o almoço acaba e a mesa se esvazia, a cadeira permanece, silenciosa, como um guardião das histórias que a família carrega. Alguém ajeita a toalha sobre ela, como se pudesse cobrir a ausência, mas a saudade não se deixa enganar.
Ela é o poema que vive nos interstícios, nos silêncios que a mesa não diz, nas memórias que o pão quente não apaga. E eu, recolhendo os pratos, penso que a vida é isso: uma reunião de família onde a saudade é a poeta, e a cadeira vazia, seu caderno. Nela, escreve-se o que amamos, o que perdemos, o que, mesmo ausente, nunca deixa de ser nosso.
