Lá onde estive, a manhã não começa com um sino só. Começa com sete sinos, um tambor, um chamado árabe que escorre do minareto, um ponto de candomblé que vem do terreiro no fim da ladeira, e até o silêncio profundo dos budistas que, às cinco e meia, já estão sentados olhando a parede como quem olha o mar.
Deus, parece, resolveu morar num apartamento coletivo e não escolheu andar.
Às sextas, o muezim canta e a voz dele desce pelo morro como água. As janelas se abrem, as avós muçulmanas estendem tapetes na laje, os meninos jogam bola descalços sem se importar com a hora sagrada. Na mesma rua, duas quadras abaixo, o pastor evangélico já ligou o retorno e a bateria começa a ensaiar para o culto da noite. Ninguém reclama do barulho. Aqui o barulho é respeito: cada um faz o seu, e o outro escuta como quem escuta música estrangeira que, no fundo, fala do mesmo amor.
No sábado, o cheiro de incenso toma conta do bairro. É o seu Zé Maria acendendo defumador na porta do centro espírita, pedindo licença aos guias para varrer a calçada. No mesmo horário, os judeus ortodoxos descem a pé para a sinagoga, de kipá e tzitzit balançando, cumprimentam o Seu Zé com um “Shabat shalom” e ele responde “Axé, meu irmão”. Ninguém acha estranho. Estranho seria se não se cumprimentassem.
Domingo então é carnaval de almas. A igreja católica toca sino às seis, sete, oito, nove. Os evangélicos têm culto às dez, às dezoito, às vinte. O terreiro de umbanda gira ao meio-dia e à meia-noite. Os ateus tomam café na padaria e leem jornal sem ninguém os olhar torto. Uma moça de dreads passa com camiseta do Che Guevara e terço no pescoço. Um rapaz de barba longa e camiseta do Iron Maiden carrega uma bíblia debaixo do braço. Ninguém pede coerência. Aqui a fé é roupa que a gente veste do jeito que cabe no corpo.
Teve um dia que a luz acabou no bairro inteiro. Era noite de sexta. O muezim não tinha microfone, o pastor não tinha retorno, o padre não tinha órgão, o pai de santo não tinha som. De repente, todas as religiões ficaram mudas ao mesmo tempo. Então aconteceu o impensável: as pessoas saíram de casa, acenderam velas, sentaram nas calçadas e começaram a rezar juntas, cada uma no seu idioma, na sua melodia. Um salmo, um surata, um ponto cantado, uma ave-maria. Tudo ao mesmo tempo. Parecia briga. Era harmonia.
Quando a luz voltou, duas horas depois, ninguém queria entrar em casa. Ficaram ali, conversando, dividindo café, bolo de fubá, tâmaras, pão de queijo. Uma senhora evangélica perguntou à ialorixá como se fazia aquele ebó de pipoca. A ialorixá perguntou à freira como era a novena de São Jorge. O rabino ensinou um menino muçulmano a fazer pão trançado. Ninguém converteu ninguém. Só trocaram receitas de Deus.
No dia seguinte, cada um voltou para o seu canto. Mas alguma coisa ficou diferente. O muezim passou a cantar um pouquinho mais baixo. O pastor trocou o “aleluia” gritado por um “amém” mais manso. O sino da igreja católica pareceu tocar mais devagar. Até o tambor do terreiro ganhou um compasso mais acolhedor.
Aqui a gente aprendeu na marra que ninguém precisa abrir mão da sua fé para dar espaço à fé do outro. Basta abrir a janela.
Porque, no fim das contas, toda prece sobe para o mesmo céu. E o céu, esse sim, é especialista em diversidade, sabe traduzir tudo.
Até o silêncio de quem não acredita ele escuta como oração.
