Na rua do hotel em que me hospedava sempre que ia à trabalho àquela cidade, as neninas desfilavan todas as noites até altas horas da madrugada. Algumas mais jovens, mais bonitas e bem arrumadas do que outras, mas havia garotas para todos os gostos. Elas se insinuavam a todos que passavam. Muitos frequentavam o lugar com o objetivo de arrumar uma acompanhante para a noite.
Como a sede da empresa ficava bem próxima, ao final da jornada de trabalho diária, voltava para o hotel caminhando. Invariavelmente, ao passar por lá, era abordado por algumas delas. Sem ser indelicado, sempre recusava suas companhias; cansado do trabalho, queria mais era me recolher o quanto antes, pois no dia seguinte precisaria retomar minha rotina bem cedo. Além do mais, não sou afeito a esse tipo de divertimento, as poucas vezes que me aventurei, achei uma coisa bem insossa e mecânica: a moça, após consumar o ato, pega o dinheiro, vai embora, e nem se quer se despede; e você fica olhando para as paredes…
É bem verdade que de tanto passar por elas, me afeiçoei a algumas, em especial, uma loirinha muito bonita e simpática, aparentando seus trinta e poucos anos. Muito graciosa, sempre vinha ao meu encontro. Parecia mesmo ter gostado de mim, para além do interesse comercial, digamos. Trocávamos algumas palavras, ela sempre muito bem-humorada, brincava comigo de forma maliciosa e provocativa, mas nunca passou disso.
Um dia, porém, quando me aproximava, ela veio a meu encontro em um tom diferente, me pedindo para lhe pagar um lanche no trailer estacionado todas as noites próximo à esquina. Estava com muita fome, pois havia saído de casa somente com o dinheiro da condução e não tinha conseguido nenhum cliente até aquele horário, já eram 9 da noite. Obviamente, não pude recusar aquele pedido. Ela me agradeceu muito, disse que estava à minha disposição e me entregou um cartãozinho.
Despedi-me dela, guardei o cartãozinho no bolso da camisa, sem prestar atenção ao conteúdo e dirigi-me rapidamente ao hotel. Diferentemente de outros dias, em que preferia ir para o quarto, tomar uma bebida, um banho relaxante e somente depois o jantar, fui direto ao restaurante, pois também estava com muita fome. Depois de tomar meu tradicional café “espresso” trazido pelo garçom sem que precisasse pedir, subi para o quarto e tomei meu banho noturno para relaxar e embalar o sono.
Quando peguei a camisa usada durante aquele dia, para colocá-la no envelope da lavanderia, lembrei-me do cartãozinho no bolso. Era um pequeno pedaço de cartolina cor-de-rosa, recortado em forma de coração e perfumado. Nele se lia: “CAMILA – ACOMPANHANTE”, abaixo, o número de um celular. No verso uma frase: “ME CHAMA, VOCÊ NÃO VAI SE ARREPENDER”. Coloquei-o sobre a mesa de cabeceira e continuei o que estava fazendo.
Concluído o ritual de todas as noites, deitei-me e me dei conta de que estava sem sono. Peguei o controle da TV, mas pensei: meu time não joga hoje e não há nenhum outro jogo interessante para se ver: a única coisa que me anima a ligar o aparelho televisivo, hoje em dia, é o futebol. Recoloquei o controle remoto na mesa, acendi a luz da cabeceira e peguei novamente cartãozinho. Cheirei-o, o perfume era mesmo sensual, e li novamente: “CAMILA”. Puxa, nem havia perguntado seu nome, tampouco me apresentei.
Fato era que eu estava pensando na linda loirinha, com seu vestidinho preto, “discretamente deselegante”, como diz o poeta. Me dei conta de que o pensamento nela era o responsável pela minha momentânea insônia. Sem parar para pensar, peguei o celular e liguei para o número do cartãozinho. Do outro lado uma voz doce e melodiosa:
– Boa noite, amor! Me diga onde você está e eu vou até aí realizar seus desejos!
Ela não sabia com quem estava falando, mas só poderia ser alguém interessado nos seus serviços, pois as meninas da rua, obviamente, possuem um número exclusivo para o trabalho e somente o fornecem aos potenciais clientes. Ǫuando não estão na luta, deixam-no desligado.
Perguntei quanto cobrava. Ela falou. Achei o preço bem razoável e passei minha localização. Ela então disse:
– Ǫue bom, amor! Esse hotel é um dos mais “amigáveis”, deixam a gente entrar sem complicar, alguns barram nossa entrada e só liberam à base de uma caixinha. Em um minuto estarei aí…
Tive a impressão de que em apenas alguns segundos bateu à porta. Abri e pude olhar bem para ela. Era mesmo muito linda, embora, dava pra ver pela raiz dos cabelos crescendo que não era loura autêntica. Outra constatação: talvez fosse um pouco mais velha. Mas nada disso tirava dela o encanto…
Fizemos o que devia ser feito. Ela sempre gentil e sensual, perguntou se podia tomar um banho. Claro, consenti!
Ela, após pegar o dinheiro, se demorou mais um pouco. Perguntou meu nome, de onde eu vinha, se era casado, se estava na cidade a passeio ou a trabalho, enfim, tive mesmo a sensação de que estava interessada em me conhecer melhor. Depois de alguns minutos, se despediu educadamente, me agradecendo e se colocando à disposição para outras vezes.
Fato é que, se já tinha me simpatizado com Camila, sem mesmo saber seu nome, depois daquela noite, ne cativou definitivamente, a ponto de eu me acostumar com sua companhia. Ficava com ela pelo menos uma vez durante minha estada quando retornava à cidade. Passamos a conversar e nos conhecermos melhor nos minutos em que permanecia no meu apartamento após prestar seus serviços, afinal, precisava voltar à rua, pois a vida não estava ganha.
Uma certa noite, porém, diferentemente do usual, perguntou-me se podia se demorar mais um pouco comigo. Disse estar muito cansada por ter tido um dia muito agitado com uma série de questões pessoais a resolver, impedindo-a de dormir o suficiente após chegar do trabalho, alta madrugada.
Ficamos mais de duas horas conversando sobre a vida e até fizemos sexo mais uma vez. Falei un pouco sobre neu trabalho. Falei dos filhos e de alguns planos. Mas não me alonguei demais. Deixei-a falar sobre si. Ela queria confidenciar suas aventuras e desabafar um pouco seus problemas e angústias.
Disse-me que nascera em um pequeno município rural no interior de Minas Gerais e trabalhara na roça até o início da idade adulta. Levantava-se às 4 da manhã, pegava um caminhão de boias-frias, junto com seus pais e cinco irmãos, e iam todos para a plantação de café. A labuta só parava nos rápidos intervalos para alimentação, feita ali mesmo no meio da lavora, e terminava às 5 da tarde. Exaustos, voltavam para a casa no mesmo caminhão, jantavam e por volta das 7 da noite já estavam dormindo.
Quando completou 18 anos, saiu de casa para tentar a vida na cidade grande. Chegando lá, por intermédio de uma empresa de contratação de mão-de-obra, foi trabalhar como empregada doméstica num apartamento de alto luxo onde residia um rapaz solteiro dos seus 30 anos, chamado Beto, bem estabelecido profissional e socialmente.
Já no primeiro dia, apesar de sua aparência simplória, tanto no comportamento quanto na vestimenta e no modo caipira de falar, mas muito perspicaz e desconfiada; com todo seu carisma, beleza, educação e sensualidade, percebeu o olhar interessado de seu novo patrão. Embora tenha se assustado um pouco com essa percepção, não recusou o trabalho, pois a remuneração era muito boa, o local era excelente e havia um espaço amplo na área de serviço, onde ficavam as dependências de empregada que pareciam garantir sua privacidade.
Pela manhã, o único contato entre os dois era no café da manhã, servido por ela, pontualmente às 8, ficava por perto, caso ele desejasse mais alguma coisa. Após isso, Beto saia para o trabalho e só voltava à noite para o jantar. Mas, muitas vezes, não o via chegar, pois a avisava que teria algum com promisso fora e a dispensava do serviço.
Quando chegou do interior desde as Minas Gerais, ela era praticamente analfabeta, mal sabia reconhecer algumas silabas e escrever o próprio nome. Mas, com grande força de vontade, matriculou-se em uma escola de educação à distância e conseguiu concluir o ensino fundamental no EJA. Chegou a se matricular na mesma escola para realizar o ensino médio, mas antes de concluir o primeiro semestre, sua vida deu uma guinada de 180°. Para explicar o acontecido, entretanto, é necessário voltarmos um pouco nos fatos contados por ela naquela noite.
Embora os primeiros meses de trabalho tenham transcorrido de forma bem tranquila, depois de algum tempo as coisas começaram a fugir do controle. Ou seja, aquele suposto interesse da parte de Beto, intuído por ela no dia em que se conheceram, começou a se manifestar novamente e de forma mais intensa.
Ela, na sua inexperiência e principalmente humildade, não sabia como agir. Tentava se esquivar, mas não conseguia. No fundo, sentia-se tentada a ceder. Afinal, o rapaz era muito atraente: jovem, bonito, bem-educado e gentil; não que tivesse interesse no dinheiro dele, que, embora não fosse rico, pertencia à classe média alta; mas isso a intimidava e aumentava o poder que exercia sobre ela.
Daí a se envolverem, não tardou. Logo estava em seus braços, e pior, completamente apaixonada. Acreditava ser paixão recíproca, mas disso nunca teve certeza.
Ele passou a chegar mais cedo em casa com maior frequência e fazia questão de que Camila se sentasse à mesa e jantassem juntos, em clima romântico, com velas e tudo o que tinham direito. Depois iam para o quarto de Beto. Após o ato de amor, no entanto, dizia a ela para retornar aos aposentos de empregada, pois não deviam misturar a relação amorosa com a de emprego.
É fácil suspeitar que alguma consequência adviria dessa relação pouco usual. E foi o que aconteceu: não demorou para Camila engravidar. Beto insistiu para ela fazer um aborto, afirmando conhecer uma clínica muito boa na qual poderia fazer o procedimento com toda a segurança; ele arcaria com a despesa. Mas Camila não concordou, disse que aquilo ia contra seus princípios, afinal, tinha sido educada pelos pais na religião cristã, além do mais, nunca havia feito algo de forma clandestina.
Assim, a gestação teve continuidade. Apesar da contrariedade, Beto não alterou seu comportamento, continuou a tratá-la de forma carinhosa e o romance continuou. Custeou o acompanhamento pré-natal, parecia até estar curtindo o advento do primeiro filho. No entanto, a contradição persistia, ao mesmo tempo em que dava demonstrações de estar envolvido com ela e com toda a situação, a mantinha separada em seu quarto de empregada doméstica.
Quando Camila deu à luz, assumiu a paternidade e se responsabilizou pelo sustento, mas não se envolveu afetivamente com o menino e manteve a prática, incluindo agora a criança morando junto da mãe. Foi nesse momento, com a necessidade de criar o filho, além da casa e do patrão, em que ela abandonou os estudos.
A relação íntima entre os dois teve continuidade e Camila não tardou em engravidar novamente. O enredo se repetiu: o comportamento de Beto foi idêntico à primeira vez. Cuidou para que tudo corresse bem com ela durante a gestação e assumiu a criança quando nasceu, dessa vez uma menina. Agora eram três morando nas dependências de empregada.
Quando as crianças estavam com três e dois anos, a situação se alterou radicalmente. Beto passou a tratar Camila friamente e a demonstrar desinteresse. Não fazia mais questão de tê-la junto no jantar e as noites de amor eram cada vez mais raras. Manteve, no entanto, o sustento e a atenção às necessidades materiais da família.
Uma certa noite, ao chegar em casa, procurou por ela dizendo que precisavam conversar seriamente: teria de dispensá-la do serviço. Havia alugado uma pequena quitinete mobiliada para ela se mudar já no dia seguinte e apresentou a minuta de um termo de responsabilidade, preparada por seu advogado, assumindo o compromisso de uma pequena pensão alimentícia para os filhos.
O documento previa ainda o pagamento de uma boa indenização, suficiente para sustentá-la até arrumar um novo emprego. Ela deveria assinar, dando ampla e irrestrita quitação de toda e qualquer pendência por eventuais responsabilidades trabalhistas. Beto estava apaixonado por uma outra mulher e pretendia levá-la para morar junto dele. Camila teria de desparecer e eles nunca mais poderiam se ver. A nova namorada não poderia jamais desconfiar da existência dela e, principalmente, que eles tinham dois filhos.
Camila perdeu o chão. Sonhava com o dia em que ele a pediria em casamento e assumiria integralmente a família. Imaginava ele, um dia, com a maturidade, se transformando em un pai de verdade para seus filhos. Entrou em depressão profunda e só se segurou porque não poderia largar duas crianças pequenas sem proteção. Não tinha ânimo para procurar um novo emprego.
Ser empregada doméstica nunca foi o que desejou para si, embora fosse a única coisa que aprendeu a fazer na cidade. Quando trabalhava na casa de Beto tinha dois estímulos que compensavam a insatisfação com o tipo de emprego: o bom salário e a relação íntima com o patrão. Sabia que não conseguiria novamente nenhuma das duas coisas, bom salário e amor.
Foi quando uma amiga lhe apresentou a “profissão das ruas”. Da mesma forma, não era com o que sonhara para sua vida, mas os ganhos compensavam, davam para garantir o sustento das crianças e ainda para guardar um bom dinheiro para o futuro da família.
O menino, Thomaz, já estava com 11 anos e Beatriz, com 10, ambos no ensino fundamental. Bem protegidos e alimentados. Inclusive já estava quase conseguindo comprar à vista seu próprio apartamento. Apesar da aparência 10 anos mais velha, consequência da vida difícil que teve desde criança, Camila, na verdade, iria completar 30, mas, mesmo desgastada pelas agruras de sua história, continuava bela e encantadora.
Acalentava, ainda, mais um sonho, encontrar um bom homem que a amasse de verdade e que quisesse se casar com ela, mesmo conhecendo seu passado, pois jamais mentiria para ele. Nesse dia, abandonaria a profissão, mesmo que ele não tivesse una boa renda, pois o dinheiro guardado por ela seria suficiente para montarem um negócio próprio para sustentar os filhos e, quando estes estivessem criados, a velhice de ambos.
A história de Camila me comoveu profundamente. Embora sempre a tenha tratado com respeito, a partir daquele dia passei a admirá-la ainda mais e nos tornamos ainda melhores amigos. Continuamos a nos encontrar e ela não queria mais me cobrar por seus serviços, o que nunca aceitei. Já faz alguns meses que retorno à cidade a trabalho e não a encontro. Sinto muito sua falta. Mas acredito que finalmente tenha encontrado seu parceiro de estrada e abandonado a vida das ruas, como planejou.
Torço muito para que isso seja verdade, apesar de saber que nunca mais a verei. Guardo até hoje, no fundo da carteira, o cartãozinho cor-de-rosa, ainda resta nele um resquício esmaecido daquele perfume sensual. Ao ler a frase no verso, penso comigo: “nunca vou me arrepender!”
