Sabem o Fado tropical? Nele, Ruy Guerra e Chico Buarque ensinam que “há distância entre intenção e gesto”. Raras vezes essa distância foi maior que no caso de Odoacro. A intenção: tornar-se um poeta famoso, ou antes, um compositor de renome. O gesto, ou melhor, o não gesto? A total incapacidade de cometer até mesmo uma rima chinfrim, do tipo amor e flor.
Não faço ideia por que Odoacro, Dodô para os chegados, decidiu enveredar pelas trilhas íngremes da poesia. Desconfio que fosse uma tentativa, talvez a última, de seduzir o sexo oposto. Missão espinhosa. Aos 60 anos, contador em vias de se aposentar, Dodô era um amontoado de diminutivos, um sujeito baixinho, gordinho, meio vesguinho, carequinha.
Só não era chatinho, ao contrário, era chato pra dedéu. Ele via as tietes, nos shows, se derretendo para intérpretes e compositores; testemunhava como mulheres de todas as idades, nos saraus de poesia que frequentava, se ofereciam a poetas pálidos, de olhos fundos e longos cabelos, e babava de inveja e desejo encruado. Daí o seu sonho, dos mais úmidos que se possa imaginar.
Odoacro bem que tentava, mas até ele, desprovido do menor senso crítico, era forçado a admitir que aquelas maltraçadas, que maltraçava na tela do notebook, não eram poesia nem aqui nem na casa do chapéu. E seguia em frente, tristonho, envelhecendo a cada dia – um poeta/compositor incapaz de rimar e pior, de pegar uma mulher, jovem ou madura, bonitinha ou monstrenga, tanto fazia, para uma noite de delírio.
Foi então que ouviu um jovem meio Nova Era, no escritório de contabilidade em que trabalhava, falar em registro akáshico. Na volúpia de angariar adeptos, o apóstolo novaerista discursava para quem quisesse ouvir:
– Pois é, galera, os registros akáshicos, ou simplesmente Akasha, contêm a memória viva de todos os pensamentos, projetos, emoções e experiências de cada pessoa, não apenas na existência atual, mas também nas vidas passadas e nas futuras. E…
– As obras dos poetas e compositores estão nesses registros? – cortou Dodô, tremendo de emoção.
– Estão sim, seu Odoacro – respondeu respeitosamente o rapaz. (Não era tatu, não ia chamar pelo apelido um membro sênior da firma.)
– E como ter acesso a essas coisas?
– Existem técnicas comprovadas, seu Odoacro. O senhor pode encontrar algumas delas até na internet…
Dodô não continuou o interrogatório e afastou-se. Estava fascinado, os tais registros poderiam fazer dele um compositor de responsa!
De volta a sua casa, navegou rapidamente pelas páginas da rede com instruções para o acesso à Akasha. Não aprendeu muita coisa, não teve paciência, verificou apenas que o contato ocorria nos sonhos. Antes de dormir, acendeu uma vela pro seu anjo da guarda (nunca se sabe, melhor prevenir, né não?), deixou papel e caneta sobre a mesinha de cabeceira e rezou fervorosamente por uma comunicação livre e desimpedida. Suplicou, em especial, que pelo canal da poesia jorrassem versos magníficos. E tratou de dormir.
Acordou por volta das 4 da madrugada, suando frio, em plena crise de criatividade. Pegou o papel e a caneta e, em transe, psicografou as seguintes palavras:
“Tatu subiu no pau. É mentira de mecê”.
E tornou a adormecer.
Ao acordar, examinou sua produção psicografada. Não sabia o que era “mecê”, provavelmente, um nome ou apelido. Os outros termos, conhecia todos. Desconfiou que a música/o poema já existia (de fato, a composição, definida como “samba à moda paulista” pelo compositor, Eduardo Souto, havia surgido em 1923), mas plágio não era, e sim um presente dos deuses. Depois, em outros sonhos, viriam novos versos, até estar de posse da obra completa. Mais tarde ainda, quem sabe, viriam estrofes mais envolventes, que seduziriam todas as mulheres. (“Mentira minha”, pensou, “bastava uma, qualquer uma”).
E Odoacro, contador de 60 anos, amontoado de diminutivos, poeta/compositor prestes a vir à luz, futuro garanhão, abriu um largo sorriso, feliz como um pinto no lixo.
