Após a saída da estonteante Thífani da residência do casal Lídia-Carlos Miguel, a vida na casa de praia parecia ter voltado ao normal.
Todavia, coincidência ou não, os dois começaram a experimentar desconfortos e solavancos no relacionamento.
A coisa evoluiu de tal forma que Lídia colocou uma condição sine qua non para que continuassem a viver juntos: terapia de casal.
Ao receber o ultimato, Carlos Miguel não reagiu bem, mas como tinha uma mente aberta e amava por demais a companheira, decidiu aceitar a exigência de Lídia.
Marcada a data para o início das sessões conjuntas e definida a terapeuta particular de Lídia como a profissional mais indicada para a jornada, Carlos Miguel lembrou-se de que Carlos Manoel já havia passado pela experiência em conjunto com a ex-mulher, Judite.
Então, foi conversar com o irmão mais novo para saber como havia sido o processo e pedir dicas para melhorar o seu desempenho. Todavia, o que ouviu do mano problemático não foi nada alentador, muito antes pelo contrário:
— Olha, Miguel, prepare-se para ser vasculhado, confrontado, triturado, esculhambado, diminuído e ridicularizado.
— Como é? Você passou por tudo isso?
— Pois é, no início a terapeuta faz perguntas sobre a história do relacionamento, os problemas atuais e os objetivos que o casal deseja alcançar com a terapia. Diz que essa avaliação inicial pode ajudá-la a entender o contexto e a natureza dos problemas. Tudo muito bonito, mas, com o decorrer do tempo, você vai sendo invadido e sugado, até ser convencido de que é o último dos homens na face da terra.
— Minha nossa! Se bem que essa é exatamente a opinião atual da sua ex sobre você, né?
— Vai zoando, vai, depois não diga que não avisei!
Logo na primeira sessão, não foi difícil para a terapeuta identificar o núcleo irradiador dos problemas do casal:
— Vocês precisam fazer coisas diferentes da rotina, juntos! Dá para perceber que Lídia tem essa necessidade muito saudável e que você, Carlos, sempre a desestimula ou foge dessa demanda mais do que necessária para a consistência do relacionamento.
— Mas, doutora, nós fazemos coisas diferentes juntos, dia sim, dia não…
— Carlos, ela está falando de atividades sociais, não daquilo!
— Ah, sim! Desculpe, querida!
Identificado o problema central da recente disfunção da relação, Carlos Miguel se dispôs a um esforço concentrado para a superação da crise conjugal.
Tentaria com todas as forças flexibilizar a sua natureza caseira – e um tanto antissocial – a fim de prover o casal do convício com o meio que o rodeava, atendendo assim também a necessidade existencial da amada.
Nesse diapasão, decidiram ir a uma quermesse beneficente acompanhados de outro casal das relações da mulher.
O episódio seria o início perfeito para a harmonização da relação abalada, caso lá não estivesse o Mário Sérgio.
Mário, promotor e coordenador da quermesse cuja renda seria destinada à luta pela preservação das baleias, chamou de imediato a atenção de Lídia.
Falante, simpático, charmoso, generoso, cativante e socialmente solidário, era um humanista militante engajado nas causas mais nobres da humanidade.
Logo, ao natural, Lídia e o coordenador da quermesse entabularam um diálogo do qual Carlos Miguel participava apenas através de interjeições e exclamações.
Terminado o evento, ela se voluntariou a ajudar Mário para desativar e guardar – em um pequeno caminhão – o material usado na estrutura da quermesse.
Carlos Miguel preferiu ficar tomando café, conversando com o casal acompanhante em uma padaria próxima.
Apesar de incomodado com a situação, ele não tocou no assunto após o retorno para casa, preferindo comentar a ótima e diversificada culinária da feira. Lídia, por sua vez, não parava de falar na importância de apoiar as causas humanitárias para a construção de um mundo melhor.
Ciúme engasgado, Carlos Miguel foi desabafar com o depreciado – mas confidente sempre disponível, – irmão mais novo:
— Então, Manoel, eu confesso que fiquei bolado com essa aproximação da Lídia com o tal Mário-boa-pinta! Afinal, o objetivo da nossa ida ao evento era para ela e eu nos reaproximarmos, não para ela descobrir afinidades com o organizador da quermesse.
—´Hum… Acho que tudo isso está desnudando esqueletos da relação de vocês que estavam no armário até agora, querido irmão!
— Esqueletos? Como assim?
— Ora, pense bem, ela é uma mulher culta, inteligente, descolada, socialmente crítica, engajada, participativa e politicamente consciente…
— E daí? Você está dizendo que eu não sou nada disso?
— Sinceramente, no mínimo, em metade da lista você é nota zero.
— Pode ser, mas até agora ela sempre gostou de mim como eu sou!
— Sim, mas agora ela pode ter conhecido alguém bem mais identificado com ela. Encare, alguém bem melhor do que você!
— Valeu, irmão! Fico te devendo essa… rosnou Carlos Miguel, com um olhar quase assassino.
Na semana seguinte, Lídia parecia tentar dar continuidade ao plano de recomposição do relacionamento do casal:
— Então, Carlos, vamos a mais um evento humanitário?
— Vamos sim, amor! Do que se trata dessa vez?
— É uma feira benemerente de apoio a crianças órfãs.
— Certo! Onde é e quem está promovendo?
— É no centro, o Mário me deu o endereço da outra vez, ele é o promotor desse também.
— O quê? O Mário de novo? Eu não vou!
— Por que não? Qual o problema? Se é assim, eu vou sozinha!
— Ahá, você já sabia que eu não iria. Na real, queria ir sozinha, não é mesmo?
— Olha, eu não sabia de nada! Se não quer ir, você que sabe!
Abespinhado, Carlos Miguel saiu do quarto, desceu para a cozinha, abriu uma lata de cerveja e, pensativo, sentou.
Alguns minutos depois, Lídia também desceu e, ao passar pela porta da cozinha em direção à sala, falou
— Acho melhor darmos um tempo, Carlos. Não me espere hoje, vou passar uns dias na casa da minha mãe.
— Então está certo, você que sabe!
Passada uma semana sem notícias da companheira, Carlos Miguel, não querendo dar o braço a torcer, decidiu falar sobre a questão com alguém que não fosse o irmão mais novo.
—Alô, Thífani? Será que poderíamos tomar um chopinho hoje?
Já em um barzinho do bairro:
— Bem, Carlos, vou ser sincera: a Lídia foi passar o fim de semana em Ubatuba com o Mário.
— Puxa, você sabe se eles estão mesmo juntos?
— O que você acha? Eles foram para a praia no carro dele.
— Não acredito! E ainda cheguei a pensar que era apenas cisma minha!
— Olha, daqui a pouco tenho um compromisso com a minha irmã, sinto muito pela Lídia! Se você quiser conversar melhor, amanhã à noite estarei livre.
Ao saber sobre a viagem da noiva com Mário e, quase ao mesmo tempo, da disponibilidade de Thífani, Carlos Miguel foi assaltado por sentimentos ambíguos. Em um impulso, falou:
— Amanhã às 21 horas, então?
Durante o encontro, Thífani não escondeu que sempre sentira atração por ele e que, agora que a amiga estava com outro, não tinha mais motivos para negar esse sentimento.
Depois de duas horas intensas com Thífani no motel, Carlos Miguel voltou a pensar em Lídia.
— Acho que ela merece mesmo alguém melhor do que eu… que seja feliz!
— Carlos, me dá um cigarro, ronronou a loira.
— Coloquei ali na gaveta do seu lado.
— Ah, tá! Obrigada, querido! Pego depois, vou tomar um banho agora.
Enquanto apreciava a espetacular visão proporcionada pelo corpo desnudo de Thífani caminhando para o banheiro, Carlos Miguel ouviu o toque do celular. Surpreso, viu que era uma chamada de Lídia.
— Oi, linda! Como? Você está voltando de ônibus e chega daqui a duas horas? Se eu posso te esperar na estação rodoviária? Ora, claro que sim!
— Olha, Thífani…
— Eu ouvi, Carlos! Entendi, mas duas horas é muito tempo…ainda podemos ficar juntos por mais uma hora!
— Bem, você sabe que eu amo a Lídia, mas…
Depois de apanhar Lídia na rodoviária, o reconciliado casal foi colocar a conversa em dia no barzinho costumeiro.
— Então, Carlos, foi assim mesmo como já te falei! Eu não acreditei, quando chegamos ao hotel, ele simplesmente começou a falar com a mãe por vídeo. Depois de meia hora de conversa entre eles, eu peguei minhas coisas, falei que iria voltar de ônibus para casa, dei tchau e peguei um táxi para a rodoviária.
— Nossa, Lídia! Então o cara é o perfeito filhinho da mamãe, né?
— Pois é, na hora eu pensei, o Carlos jamais faria isso, ele odeia a mãe dele!
— Coisas da vida, querida! Vamos em frente…
— Certo, mas agora que eu contei a minha parte, quero que você também seja sincero: você sentiu muito a minha falta?
— Olha, querida, sabe como é, fiquei deprimido e carente… respondeu Carlos Miguel, preparando o sincericídio.
— Hum, ficou com alguém, não é mesmo?
— Bem, eu procurei a Thifani para perguntar sobre você, e aí uma coisa levou a outra…
— Não acredito! Logo com a minha melhor amiga??
— Olha, aconteceu… não foi culpa de ninguém!
Para desalento e agonia de Carlos Miguel, Lídia levantou-se e desferiu:
— Você é um crápula, Carlos! Adeus!
Dois dias após esses eventos, Carlos Miguel tomava café na cozinha quando ouviu soar a campainha.
Depois de tensos e silenciosos segundos, o dono da casa foi o primeiro a falar:
— Olá, Lídia! Você não acha que exagerou?
— É, eu exagerei, sim! Você foi sincero e, afinal, eu estava com outro homem.
— Pois é, que bom que você reconhece… então, vamos sair para comer alguma coisa?
— Espere, você nunca quer sair para comer fora!
— Bem, eu estou com fome, você não?
— A Thifani está lá em cima, intuiu, Lídia.
Sem saída e sem mais argumentos, Carlos Miguel perguntou à atual-ex-futura-noiva:
— E então, nós reatamos ou eu estou liberado para subir?
— Ah, Carlos, você sabe que eu adoro aquele filé à parmegiani do bistrô do bairro, disse Lídia pegando a bolsa.
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Link para acessar a parte 1 do conto “A tentação se hospedeu lá em casa”, do escritor J. Emiliano Cruz:https:
www.notibras.com/site/a-tentacao-se-hospedou-la-em-casa/
