Acordei sem saber quem eu era. O nome ainda era o mesmo. O número do CPF também.
Mas havia algo faltando, algo que me escapou na madrugada sem aviso.
Tentei lembrar do que gostava. Tentei vestir a mesma roupa, comer a mesma comida, responder as mesmas mensagens. Mas tudo parecia roupa emprestada.
A verdade é que, sem que ninguém visse, eu havia morrido um pouco.
Morte simbólica, dizem os livros. Ritos de passagem, chamam os antropólogos. Fim de ciclo, falam os místicos. Pra mim, foi só silêncio. Um vazio que doía até na unha.
Não houve velório. Só uma madrugada em claro.
Não teve flores, mas teve uma pilha de louça que eu não consegui lavar por três dias.
Ninguém notou. E talvez isso tenha sido o pior.
Quando a gente morre por dentro, ninguém vem com luto preto.
A gente segue funcionando, sorrindo em fotos, entregando trabalho no prazo.
Mas o corpo sabe. O corpo sempre sabe.
E é aí que o recomeço começa.
Não com grandes discursos ou planos visionários. Mas com detalhes. Com gestos miúdos. Com vontades tímidas. Hoje, por exemplo, consegui arrumar a cama.
Ontem, consegui abrir a janela. Na semana passada, escutei uma música e chorei de alívio.
Recomeçar é recolher os pedaços daquilo que fui e montar algo que ainda não sei o que é.
É aceitar que não serei mais como antes, e que tudo bem.
É aprender a se despedir da versão que morreu sem pedir licença.
O ponto de vista muda tudo.
Antes, eu via o fim como tragédia.
Agora, vejo como intervalo.
Como pausa.
Como cena de silêncio entre dois atos.
E nesse silêncio, algo sagrado acontece: A alma aprende a respirar de novo.
A fé muda.
O corpo muda.
O vocabulário muda.
O mundo, que parecia sem cor, começa a revelar tons que antes eu não percebia.Um banho quente.
Uma oração sussurrada.
Um feijão cozinhando devagar.
Um novo caderno, uma caneta azul.
Tudo isso é linguagem de recomeço.
Sim, já morri algumas vezes sem que ninguém notasse.
Mas voltei.
Mais frágil e mais forte.
Mais calada e mais profunda.
Mais eu.
Porque o que muda tudo, mesmo, é o ponto de vista.
E do lugar onde estou agora, consigo ver: Sobreviver também é forma de fé.
