Acordava às 6h. Não cinco minutos antes ou depois, mas sempre no mesmo horário, como se aqueles desgastados olhos já estivessem acostumados a se abrirem exatamente no instante em que o ponteiro menor estivesse plantado no seis, enquanto o maior encontrasse o doze. Como se o marcador de horas dissesse: “Ei, meu amigo, já está na hora de levantar!”
Sentado na beira da cama, o homem calçava os chinelos, que pareciam saber que a hora de começar o dia era aquela. Treinados ou não, o fato é que se grudavam aos pés calejados, que caminhavam até o banheiro, depois para a cozinha, onde Altemar preparava o mesmo café e, em seguida, iam até a sacada.
Xícara nos lábios, o idoso observava o movimento na rua, que, àquela hora, parecia começar a pulsar. Alguns pensamentos percorriam a mente de Altemar. Preciso visitar o Moreira. Já faz tanto tempo que não o vejo. No entanto, logo se lembrava de que o amigo já não estava entre os vivos. Também imaginava a ausência de neve nos cabelos, outrorra volumosos e que conquistaram olhares, a maioria de admiração, outros de pura inveja.
O tempo é um azougue. Implacável. Quando menos se espera, já caímos do cavalo, rosto virado para a lama. Cadê aquelas calças curtas, a camisa encardida por tantas brincadeiras? Cadê? Cadê? Sumiram sem qualquer aviso. Do nada!
Banho tomado, Altemar escolheu seu melhor terno. Azul-marinho, a cor que, segundo a esposa, lhe caía como uma luva. Elegante, fino, com certa modernidade, mas sem perder a sobriedade. Perfeito. Gravata ajustada, ouviu a campainha. Quem seria? E por que Eulália não teria ido atender? Talvez estivesse na mercearia. Isso. Agora que Altemar se lembrava da conversa que teve com a amada na noite anterior.
— Meu bem, que tal aquele suflê de batata que você tanto adora?
— Ah, você sempre me deixando gordo, meu amor.
— Forte!
Altemar, agora se olhando no espelho, ainda sentiu o toque dos lábios de Eulália, quando, então, a campainha tocou novamente. Como estava só em casa, finalmente foi ver quem era.
— Vô, por que demorou tanto?
— Estava no quarto. Preciso mandar arrumar essa campainha. Quase não dá pra escutar.
— E por que o senhor está todo arrumado assim? Vai a algum lugar?
— Ih, Janaína, tenho que ir. Estou atrasado.
— Atrasado pra onde, vô?
— Pro trabalho.
— Trabalho?
— É.
O velho deu um beijo rápido na testa da neta e, já na rua, não ouviu a garota falar.
— Mas, vô, o senhor é aposentado.
E, mais alguns passos adiante, Altemar gritou:
— Volto pro almoço. Hoje a sua avó vai fazer aquele suflê de batata que você adora.
Janaína nem se deu ao trabalho de dizer para o avô que ele era viúvo.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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