Uma carta. Por pouco não a descartou, julgando tratar-se de mais uma ação de marketing indesejada, afinal, quem mandaria uma missiva em plena era de aplicativos de conversas? Mas notou algo diferente: o envelope exalava um perfume, não uma fragrância qualquer, o aroma indicava que a pessoa que a enviara tinha bom gosto e requinte.
Mais intrigante que o invólucro, porém, era o conteúdo. Não reconheceu o nome da remetente, ainda assim, a mensagem curta — escrita à mão, com uma bela caligrafia, embora marcada por traços vacilantes— carregava um tom de urgência. Solicitava sua presença, uma visita para ser mais preciso, em um quarto de hospital, tornando a situação ainda mais desconcertante.
Movido mais pela curiosidade e um pouco de apreensão, decidiu atender ao chamado e dirigiu-se ao hospital. Transpostas as etapas burocráticas, vagou lentamente pelos corredores da ala de internação. A longa distância até o quarto indicado na carta não ajudou a dissipar a ansiedade, pelo contrário, cada passo intensificava o frio na barriga. Chegou mesmo a desejar ser barrado, mas ninguém o deteve e logo estava em frente ao quarto e enfim descobriria quem o convocara.
Abriu a porta devagar, permitindo-se focar sua visão nos objetos triviais que compunham a cena — uma cadeira encostada, uma mesa com flores murchas, o sussurro distante das máquinas — deixando por último a tarefa de pousar o olhar sobre a figura que jazia imóvel na cama.
Mesmo na penumbra do ambiente, percebeu tratar-se de uma mulher de porte delicado, magra, pequena. Suas feições, outrora suaves, agora revelavam marcas profundas, prováveis vestígios de uma longa batalha contra a doença que a trouxera até ali. A ausência total de cabelos sugeria que enfrentava um tratamento agressivo, provavelmente contra o câncer.
Permaneceu imóvel junto à porta, absorvido em sua análise. Não ousava entrar, temendo despertar a paciente. Não teve dúvidas: tratava-se de algum engano, lembraria se alguma conhecida estivesse tão enferma. Decidiu recuar, já se virava para partir, quando uma voz frágil, mas firme, rompeu o silêncio e o deteve:
— Você veio!
Se a figura fragilizada não trouxe à tona nenhuma lembrança, tão pouco a voz doce e fraca foi capaz de desperta-lhe alguma memória. Virou-se e começou a dizer:
— Desculpe-me, não queria acordá-la. Acho que houve…
— Não, não houve engano. Eu convidei você.
— Sinto muito, não…
— Não me conhece, eu sei.
A contradição o deixou sem fala. O silêncio entre ambos durou mais alguns instantes.
— Peço desculpas, interrompi você duas vezes. Tentarei não repetir isso. Nunca tive o hábito de cortar a fala das pessoas, mas na condição em que me encontro, às vezes me afobo… preciso dizer tudo o que ainda resta ser dito… antes do fim.
A menção à morte dita com tanta naturalidade o deixou desconfortável, não sabia o que dizer sem parecer indelicado, devia perguntar detalhes de sua condição? Sentiu que essa seria a pior opção. Ficou em silêncio por alguns instantes, até que, por fim, murmurou:
— Não se preocupe, eu entendo.
— Também peço desculpas por te colocar nessa situação, sei que deve estar confuso. Ainda assim, agradeço por ter vindo. Minha família tem estado ao meu lado, mas hoje pedi que me deixassem sozinha, pois queria recebê-lo. Entenda: restando tão pouco tempo para mim, se você não viesse, eu teria desperdiçado os últimos momentos que me restam com aqueles que amo.
Sentiu seu corpo começar a desfalecer ante o fardo inesperado de saber o custo em tempo daquela sua visita à desconhecida a sua frente.
Percebendo o embaraço do visitante, ela ergueu levemente a mão e pediu:
— Por favor, sente-se. Quero, enfim, explicar por que o chamei.
— Você não se lembra de mim, mas já nos conhecemos, não fomos íntimos, cursamos algumas matérias em comum na faculdade.
Diante daquela primeira revelação palpável, tentou resgatar alguma lembrança daquele rosto, mas em vão. Ela percebeu sua tentativa e, com um tom de humor em sua voz cansada, continuou:
— Não tente me reconhecer usando como parâmetro o que vê agora, não estou nos meus melhores dias – Enquanto falava, procurou no celular uma foto de 12 anos atrás e mostrou a ele. Na imagem, uma jovem de beleza serena, sorriso aberto e olhar cheio de vida. Ele contemplou por alguns instantes, tentando forçar a memória, mas nada emergiu.
— Sinto muito. Não consigo me lembrar — disse, devolvendo o aparelho com delicadeza. — Naquela época eu era um tanto avoado.
— Eu me lembro — disse ela, sorrindo — Você passava muito tempo cercado das garotas mais bonitas da faculdade.
Pela primeira vez desde que chegara, ele conseguiu sorrir, ainda que envergonhado, ao recordar como vivia sempre se engraçando com suas colegas.
— Quanto a mim, lembro-me bem de ti. Na verdade… apaixonei-me por você. Eu sempre fui tímida e, em vez de disputar sua atenção com nossas colegas, guardei esse amor só para mim. Sofri em silêncio diante da sua indiferença, ao mesmo tempo em que fantasiava com a possibilidade de ser correspondida.
As palavras, ditas com serenidade e sem rancor, caíram sobre ele como um peso inesperado. Não sabia se deveria sentir culpa, compaixão ou apenas surpresa. O contraste entre a fragilidade da mulher e a força de sua confissão tornava o momento ainda mais desconfortável.
Ela falava com calma, sob o olhar perplexo do convidado, que a tudo ouvia sem se pronunciar. Explicou como, por diversas vezes, pensara em se aproximar, mas sempre fora vencida pela timidez e pela constatação de que o objeto de sua admiração já se encontrava em algum relacionamento. Assim, preferiu cultivar em silêncio aquela paixão, guardando-a como um segredo íntimo.
Ele, por sua vez, lembrou-se de que raramente ficava sozinho naqueles tempos. Não era adepto do amor duradouro e, se fosse honesto consigo mesmo, não saberia dizer ao certo se já havia amado de verdade alguém.
A segurança com que aquela desconhecida se abria, expondo sentimentos guardados por tantos anos, fez com que aos poucos ele relaxasse. Sem perceber, a tensão inicial que o dominava se dissolveu em descontração. Passou a interagir mais, e o diálogo fluiu com naturalidade. Conversaram por quase duas horas, sobre lembranças, sonhos, medos e até banalidades, como se fossem velhos conhecidos que apenas retomavam uma conversa interrompida há muito tempo.
— O momento da formatura, que deveria ser alegre, tornou-se um tormento para mim. Eu sabia que dificilmente o veria de novo e que as minhas já poucas chances de ser teu amor se reduziriam a quase nada, e assim aconteceu. Nunca mais te vi, mas acompanhei sua vida de longe, pelas redes sociais, escrevi-lhe poesias que nunca mostrei a ninguém, fantasiei mil histórias ao seu lado, chorei suas perdas e comemorei suas vitórias.
— Olha, eu…
Agora não era ela quem o interrompia, seus próprios pensamentos o abandonavam.
— Não me entenda mal —prosseguiu ela, com voz firme apesar da fragilidade — não te chamei aqui para responsabilizá-lo pelas minhas dores ou tristezas. Vivi uma boa vida até aqui. Tive alguns namorados, a maioria foram relacionamentos saudáveis e repletos de carinho, mas o fato é que nunca deixei de te amar, e agora, que meu fim se aproxima, queria pelo menos uma vez, essa última vez, ser honesta comigo mesma e contar a você meu segredo.
Ela respirou fundo, como quem liberta um peso guardado por anos.
— Não espero nada de você, não me deve nada. Compreendo que pode parecer cruel da minha parte te dizer essas palavras, e por isso compreenderei se for embora agora. Não sei se alguma vez se sentiu amado e não queria partir desse mundo sem te dizer que ao menos eu te amei com toda a intensidade que se podia amar.
Pareceu-lhe que, ao pronunciar aquelas últimas palavras, todas as forças dela se esgotaram. Até então, seus olhos eram como uma ilha de resistência naquele corpo frágil, mas agora também se rendiam, baixos, cansados.
De sua parte, tamanha demonstração de afeto, sem que nada houvesse feito para merecê-la, o abalava profundamente. Sentia-se pequeno diante da intensidade daquele amor silencioso, guardado por tantos anos e revelado apenas no limiar da vida.
— Você parece cansada — disse, pegando em sua mão. Era a primeira vez que tocava sua pele, e surpreendeu-se ao sentir o calor que contrastava com o aspecto de morte que imaginara em sua nova amiga. — Posso voltar amanhã para conversarmos mais. Hoje tenho muita coisa para pensar sobre tudo o que me disse.
As palavras dele pareceram revigorar suas forças, pois ela abriu um sorriso e levantou um pouco a cabeça:
— Você faria isso? Realmente não precisa se incomodar, eu …
Dessa vez foi ele quem a interrompeu:
— Não será incomodo, gostei da conversa, quero saber mais sobre sua história.
— Eu ficarei muito feliz se vier.
— Conte comigo — disse, levantando-se. Por um instante, hesitou: não sabia como agir, era um completo ignorante quanto aos protocolos médicos em situações assim. Mas, reunindo coragem, inclinou-se e beijou-lhe a testa. Foi um beijo demorado, carregado de ternura, não de piedade. E, de algum modo, teve a certeza de que ela também percebeu isso.
— Obrigado por ter vindo.
— Eu agradeço o convite.
Seu estado de espírito ao deixar o hospital não lembrava em nada o da chegada. Sentia-se leve, como se aquelas últimas horas tivessem sido exatamente o que precisava para escapar da rotina exaustiva — não apenas do trabalho, mas também das noitadas com amigos que, precisava admitir, tornavam-se cada vez mais frequentes. Estar com ela havia sido, sem dúvida, a experiência mais significativa dos últimos tempos em sua vida de solteiro convicto.
Embora tivesse dito que havia muito a refletir, não o fez. O sono veio rápido naquela noite, vencendo o cansaço acumulado. Na manhã seguinte, levantou-se cedo e mergulhou no trabalho, determinado a liberar a tarde para reencontrá-la. Assim, pouco espaço restou para ponderar sobre as revelações de sua admiradora.
Quando a hora chegou, partiu ansioso para o hospital. Desta vez, seus passos eram mais firmes, quase confiantes. Na recepção, uma moça simpática digitava seus dados no computador. Diferente do dia anterior, o procedimento demorava mais do que o esperado. Chegou a pensar que a atendente estivesse em treinamento, com dificuldades para operar o sistema, já que discretamente pediu auxílio a um colega. Mas, ao que tudo indicava, nem ele conseguira resolver o que quer que estivesse acontecendo.
— Senhor, peço a gentileza de aguardar ao lado. Logo alguém falará com o senhor — disse o atendente, virando-se imediatamente, sem lhe dar chance de perguntar o motivo da demora.
Ele percebeu que algo mais sério estava acontecendo: os outros visitantes eram liberados rapidamente após a identificação, mas com ele o processo se arrastava. A apreensão cresceu.
Pouco depois, viu o atendente retornar acompanhado de uma enfermeira.
— Olá, meu colega disse que o senhor veio visitar alguém, o senhor não é da família, certo?
— Não, sou apenas um amigo, estive aqui ontem e nós combinamos….
— …Eu sinto muito, ela faleceu nesta madrugada.
No início, ele não reagiu. Fitava um ponto qualquer no vazio, como se tivesse perdido, por alguns instantes, a noção de onde estava — ou mesmo de quem era. Mais tarde, ao recordar aquele instante, concluiria que vivera uma espécie de privação completa dos sentidos, que só retornaram na forma de um arrepio e de um calor intenso percorrendo todo o corpo.
— O senhor está bem? Quer se sentar? — perguntou a enfermeira, preocupada.
— Mas… nós marcamos… eu disse que viria… eu… — as palavras saíam desconexas, sem sentido.
Percebendo o absurdo do que dizia, apenas agradeceu a informação e, em silêncio, retirou-se do hospital. Caminhou até uma praça próxima e sentou-se em um banco.
Quem o visse ali talvez imaginasse um homem perdido em pensamentos. Mas a verdade é que sua mente estava tão vazia quanto seu olhar. Nunca se sentira tão impotente diante de uma situação. Como podia estar tão desamparado pela partida de alguém que mal conhecia?
Já em casa, descobriu pelas redes sociais dos antigos colegas da faculdade a enorme comoção que a morte de sua admiradora havia causado. Foi assim que soube também o local e o horário do velório, decidindo comparecer.
No salão silencioso, não falou com ninguém da família — não saberia o que dizer. Limitou-se a observar as inúmeras manifestações de tristeza que aquela despedida provocava. Reconheceu alguns rostos, colegas que não via desde a formatura, mas não se aproximou. Não era o momento para reencontros, e a sensação de deslocamento que o acompanhava desde a notícia apenas reforçava sua distância.
Tinha consciência de não ter feito nada errado, ainda assim carregava uma estranha forma de culpa: a ausência ao lado dela nos últimos anos, mesmo sem saber que era alvo de um amor silencioso e persistente. A ideia de ter sido amado por tanto tempo sem jamais perceber pesava sobre ele como um fardo inesperado.
Nos dias seguintes, seus amigos começaram a estranhar seu comportamento. Não era comum que faltasse a tantas farras como vinha acontecendo, mas, apesar da sua ausência, eles continuavam a se divertir sem ele.
Sozinho em casa, buscava uma forma de dar vazão aos sentimentos confusos que aquele encontro lhe despertara. Por puro pragmatismo — e talvez também por necessidade de se reencontrar consigo mesmo — decidiu iniciar um projeto pessoal. Não sabia ainda a dimensão que teria, mas esse gesto simples acabaria por transformar de maneira perene sua vida.
Tudo começou quando voltou para casa após o sepultamento. Ligou o computador, movido pela esperança de não estar atrasado também nisso, e inspirado pelo que ela lhe dissera sobre tê-lo acompanhado ao longo dos anos pelas redes sociais, acessou, então, o perfil de sua agora inalcançável amiga. Temia que a página fosse privada ou, pior, que a família já houvesse desativado a conta.
Para sua grata surpresa, encontrou-a aberta, repleta de fotos, vídeos e textos. Se no mundo físico aquela moça se mostrava tímida ao extremo — capaz de viver um amor silencioso sem jamais admiti-lo até os últimos instantes — no mundo virtual revelava-se expansiva, corajosa e, sobretudo, disposta a compartilhar aspectos profundos de sua personalidade.
Disposto a conhecê-la melhor, passou a acessar aquele perfil todas as noites, ao retornar do trabalho para casa. Decidiu que a cronologia era importante: começaria pelo conteúdo mais antigo, avançando pouco a pouco até chegar aos últimos dias. Empolgava-o a ideia de ter, assim, um vislumbre de como aquela jovem acanhada havia se transformado ao longo dos anos.
A cada noite, descobria novos motivos para admirá-la. Revelava-se uma alma carregada de virtudes: gentil, sensível, apaixonada por literatura e pela música brasileira, militante de causas ambientais e humanitárias. Gostava de escrever, e seus textos eram belos, cheios de sentimentos e positividade.
Mas o que mais o encantava eram as poesias. Ali, nas palavras que ela deixara registradas, havia uma intensidade que ultrapassava o silêncio de sua vida real. Versos que falavam de amor, de esperança, de dor e de beleza, e que agora, para ele, tornavam-se uma ponte tardia entre dois mundos que quase não se tocaram.
Deu-se conta de que até aquele momento nunca havia apreciado poesia. Lembrava-se vagamente de aulas de português muito distantes no tempo, em que era obrigado a contar sílabas poéticas, sem, contudo, despertar nele qualquer interesse nos anos seguintes. Agora, porém, percebia a primeira mudança concreta em sua vida proveniente daquele encontro: descobrira-se um amante dessa arte de esculpir sentimentos com palavras. Passou a intercalar entre a leitura dos poemas de sua amiga com obras de autores clássicos.
Já seus amigos, muito antes notaram algo diferente, o rompimento com as velhas práticas de excessos noturnos ocorreu de forma abrupta e aos poucos deixaram de insistir em chamá-lo para as farras, diante das recusas do amigo agora quase recluso.
Um dia, após a leitura de mais um poema, deu-se conta de que muitos daqueles versos lindos e carregados de sentimento provavelmente haviam sido escritos para ele. A revelação o atingiu como um raio: o aperto no coração era tão intenso que quase se confundia com dor física.
Movido por essa descoberta, releu os textos que já conhecia e percebeu algo novo: uma mesma poesia pode ganhar diferentes sentidos quando apreciada em estados de espírito distintos. Essa percepção ampliou sua experiência, tornando cada leitura uma revelação inédita.
Ao se imaginar, ainda que presunçosamente, como inspiração de tão talentosa poetisa, deixou de se sentir apenas um espectador. Passou a enxergar-se como parte daquela história, como se os versos fossem um diálogo secreto entre eles, finalmente revelado.
Dias viraram semanas, e outras mudanças começaram a se revelar nele. Sempre fora ateu, impaciente diante de qualquer abordagem espiritual, mas pela primeira vez se permitiu pensar no assunto. Acompanhava, através das lembranças e escritos dela, a forma leve e despretensiosa com que demonstrava sua fé enquanto esteve neste plano. Envergonhou-se ao recordar as vezes em que fora ríspido com a própria mãe, quando esta, com gentileza, o convidava para ir à igreja.
Numa noite, de maneira desajeitada pela falta de prática, juntou as mãos e ousou proferir sua primeira prece. Não pediu milagres, não buscou respostas. Apenas murmurou, com sinceridade: se existisse um céu, ou qualquer outra dimensão além da vida, queria estar lá, para ter outra chance de conhecê-la.
Sua não planejada jornada de crescimento pessoal até ali fora agradável, inspiradora e transbordante, à medida que todos ao seu redor percebiam um novo homem que se tornara mais amável, gentil, sensível às necessidades dos outros e menos egocêntrico do que em outros tempos. Mas, então, algo mudou.
Atento às datas das postagens, percebeu que, repentinamente, elas haviam diminuído há cerca de três anos. Por várias semanas, a atividade virtual da jovem tornara-se quase inexistente, exceto por textos curtos, carregados de uma melancolia que destoava de tudo o que observara até então. O motivo era óbvio: naquele instante, contemplava com um atraso de três anos o momento em que ela descobrira sua doença.
Interrompeu a pesquisa. O que até então fora uma jornada de autoconhecimento e descobertas empolgantes transformara-se em dor. Sentia que havia dedicado muito tempo a construir, em sua mente, aquela personalidade que só pudera conhecer por breves vislumbres. E agora, se continuasse, corria o risco de destruir a história que passara a vivenciar como se fosse sua própria.
Demorou três dias até reunir coragem para continuar sua pesquisa. Quando finalmente o fez, leu emocionado o primeiro relato público da moça sobre a doença que havia interrompido de forma abrupta a possibilidade daquela amizade florescer.
Surpreendeu-se ao perceber a dignidade com que ela conduziu sua luta final. Viu a dedicação com que ela engajara-se em programas de apoio às vítimas do mesmo mal que a consumia. Em cada postagem, havia força, esperança e uma energia que parecia inesgotável: participava de eventos, visitava hospitais, gravava vídeos educativos.
Nada em suas palavras ou atitudes revelava fraqueza. Pelo contrário, transmitia coragem e serenidade. Mas, aos poucos, sua aparência começava a denunciar o que as postagens escondiam: sinais discretos, mas inconfundíveis, de que algo não estava bem.
Desde que ele iniciou sua busca, encantou-se com a beleza daquela mulher a quem dera nenhuma atenção quando eram mais jovens. Em especial sentia-se atraído pelo riso fácil e sincero, que o faziam lembrar dos sorrisos ensaiados para câmeras de atrizes famosas, mas que em seu rosto angelical se encaixavam de forma tão natural. Mas após a revelação de sua condição, a cada nova foto, postadas com intervalo médio de 5 dias entre uma e outra, conseguia perceber que aos poucos a enfermidade roubava parte daquela formosura. Notava a constante perda de peso, o afundamento dos olhos, a palidez da pele e o mais perturbador: aquele sorriso encantador, ainda presente, mas já distante da espontaneidade de outrora, emanava agora uma aura de esforço, como se fosse sustentado pela vontade de não deixar a esperança se apagar.
Nem por isso o encanto diminuiu, se até aquele ponto de sua vida ele valorizara os atributos físicos das várias mulheres com quem se envolveu, agora havia aprendido de forma dolorosa o valor de uma personalidade forte, inteligência, carisma, determinação, empatia, elegância e tantas outras qualidades que descobrira nela. Sua admiração por aquela mulher crescia na mesma medida em que crescia também sua vergonha pela existência fútil e egoísta que empreendera até então. Não conseguia encaixar a ideia de ter sido o objeto do amor de uma alma tão nobre.
Percebeu, então, uma nova mudança em si próprio: a intensidade do desejo de ter estado ao lado dela nos anos difíceis, oferecendo suporte, carinho e renunciando aos próprios prazeres. Esse pensamento surgia em contrassenso aos hábitos hedonistas que cultivara por tanto tempo, revelando que, enfim, começava a se transformar em alguém diferente.
Foi se tornando cada vez mais melancólico à medida que se aproximava o fim daquela jornada solitária de aprendizado. Por vezes, sentia-se como uma criança diante de emoções desconhecidas, ou que, quando muito, havia experimentado apenas de forma superficial.
O fim, inicialmente imperceptível, tornava-se pouco a pouco palpável. E, junto dele, um novo sentimento se estabelecia em seu peito. Se lhe perguntassem, não saberia explicar: era uma sensação inesperada de que, de alguma forma, as peças estavam se encaixando. Como se até mesmo a tirania da morte não tivesse conseguido apagar uma vida que fora carregada de propósitos.
Nas últimas fotos — agora mais raras, possivelmente pelo agravamento da doença — percebia-se um rosto sereno. Um semblante de quem tinha consciência de ter vivido uma vida plena até onde foi possível, ainda que não tivesse encontrado o amor que tanto a inspirara.
Sem aviso, as postagens cessaram. Ele terminou de lê-las numa noite fria e chuvosa. Sentiu uma agulhada no peito, semelhante àquela que o atingira no instante em que soube, de forma repentina, da morte dela.
Enquanto observava a água escorrer pela vidraça, imaginou que o céu chorava a sua dor. E, num gesto quase involuntário, sorriu ao se lembrar de já ter lido algo parecido no início do romance A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón — livro favorito dela, que, inevitavelmente, tornara-se também o seu.
O que sentia naquele momento era difícil de descrever. Não era raiva — tudo o que aprendera nessa jornada o conduzia à conclusão de que esse sentimento não combinava com a pessoa que se tornara objeto de seu estudo. Não era tristeza — havia descoberto fontes de alegria que sabia poder explorar, ainda que não ao lado daquela que o ensinara a acessá-las. Não era saudosismo — compreendeu que não faz sentido sentir saudades do que nunca se teve.
Deu-se conta, então, de que o turbilhão de emoções que se agitava em seu peito era algo que jamais se permitira sentir. Algo que a vida, ou algum Deus que a guiava, decidira que era hora de lhe apresentar de forma tão dramática. Era amor.
