Notibras

Aparências, etiquetas e níveis de exigência 

Por arte do acaso (?), Ricardo cruzou com Sofia em um restaurante que o ex-casal costumava frequentar. Coincidência ou não, aquela data marcava o primeiro “aniversário” da separação entre eles.

Estarrecido, viu uma mulher espetacular e rejuvenescida, acompanhada por um galã-garotão que devia ter quinze anos a menos que ela, pinta de nepo boy e cara do Tom Cruise no inicio da carreira.

Constrangido, aproximou-se da mesa para cumprimentar o casal, pois, afinal, assim mandava a boa etiqueta, já que era ele quem tinha acabado de adentrar o recinto.

-Como vai, Sofia?

-Olá Ricardo! Estou bem, e você? Este é Mauro, meu namorado.

-Como vai, Ricardo?

-Prazer, Mauro! Sofia, permita-me dizer que você está mesmo muito bem. Meus parabéns!

-Obrigada! Você também não está mal.

-Perto de uma Ferrari como você, pareço um Fiat Palio em fim de linha, mas obrigado pela gentileza! Bem, foi um prazer revê-la. Vou deixá-los desfrutar do jantar.

-O prazer foi meu! Bom jantar para você também!

-Bom jantar, Ricardo! Foi um prazer!

Os dois já estavam beirando a casa dos cinquenta anos, mas ela parecia ter no máximo trinta essa noite, pensou Ricardo.

O casamento de duas décadas encharcado de paixão no início e salpicado de altos e baixos como a maioria dos enlaces conjugais, foi inexoravelmente definhando até não restar qualquer lasca de tesão ou sequer o necessário sentimento de companheirismo entre as partes.

Mas que mulher era aquela agora? Foi ela que se transmutou ou foi ele que estivera cego?

Fosse como fosse, o certo é que, em quase vinte anos de vida conjugal, nunca tinha visto a mulher exuberante e luminosa que há pouco estivera na sua frente.

-Bem, de qualquer forma, agora Inês é morta! Ela ressignificou a vida dela, agora preciso fazer o mesmo com a minha, refletiu, sorvendo uma colher de sopa, sua refeição preferida no lugar.

Passado um mês, Ricardo compareceu ao aniversário de uma amiga comum do ex-casal e, como dizem que o “destino” não prega prego sem estopa, logo que chegou, viu Sofia caminhar em sua direção e falar, muito desinibida:

-Olha só, que coincidência! Nos cruzamos novamente, não é mesmo?

-Parece que sim, Sofia! Tudo bem? E o Mauro, não veio com você hoje?

-Ah, não estamos mais juntos, dei o fora nele!

Ricardo engasgou com o salgadinho que tinha colocado na boca.

-Nossa! Deixa eu bater nas suas costas, disse Sofia, ao mesmo tempo em que praticava energicamente a ação.

-Tudo bem, tudo bem…obrigado, balbuciou Ricardo após se recompor.

-Você ficou surpreso?

-Bem…não posso dizer que não fiquei, Sofia! Pensei que a sua vida já estava redesenhada ao lado do boy de fino trato.

-Hum…vamos conversar lá no jardim?

-Claro, tenho todo o tempo do mundo para tentar entender isso.

-Você vai entender, disse, sorrindo, Sofia.

Já na atmosfera refrescante do jardim, o ex-casal começou a conversar mais à vontade.

-Olha… antes de te explicar sobre o Mauro, quero saber uma coisa de você, aliás, duas, disse Sofia, sem meios termos.

-Claro, sempre adorei esse seu jeito franco e direto de se comunicar. Pode dizer!

-Você está solteiro?

-Estou, sim! E a segunda pergunta?

-Hum…pensando bem, faço daqui a pouco.

-Por mim tudo bem…mas e sobre o Mauro?

-Deixa eu te explicar o meu ponto de vista sobre a questão. Eu gostava dele, achava-o maravilhoso, ele gostava de mim, mas a real é que ele me tirava a paz de espírito, mesmo que isso não fosse culpa dele. O ícone complicador da história chama-se nível de exigência

-Como? Acho que você precisa desenvolver melhor isso, replicou Ricardo, confuso.

-Vou exemplificar: eu tinha que acordar e levantar duas horas antes dele para fazer a maquiagem, senão ele iria pensar que tinha dormido com a mãe dele.

-Compreendo…dureza!

-Quando ficávamos juntos em um hotel ou em uma pousada durante um feriado, eu tinha que me “segurar” por três dias para não causar constrangimentos, afinal, ele é uma pessoa de “fino trato”, entende?

-Acho que sim…

-E depois, quando vinha, parecia um ataque terrorista…até eu mesma ficava com medo do barulho!

-Realmente, constrangedor…

-Depois de comer batata-doce, meu vício irrevogável, eu tinha que inventar uma desculpa e sair correndo para fora do ambiente em que estivéssemos juntos…

-Imagino a situação…sinto muito!

-Com você, eu podia soltar gases e fazer barulho como uma búfala que você nem ligava, percebe a diferença? Eu tinha paz de espírito para ser eu mesma sem culpas, perrengues ou constrangimentos constantes.

-Entendo, diferentes níveis de exigência…

-E sem falar que ele queria ficar na balada até de madrugada…e meus joelhos não aguentavam mais de meia hora de balanço na pista.

-Sofrido, hein?

-Muito, agora a minha segunda pergunta para você.

-Diga!

-Se é que eu não falei muita bobagem, você acha que poderíamos ter mais uma chance juntos?

Ricardo apertou os olhos para ter certeza de que não estava sonhando…era tudo que ele queria ouvir desde que tinha revisto a ex.

-Minha querida Sofia, se essa é mesmo a sua escolha, o Fiat Palio aqui está pronto, apto e revisado para acompanhar novamente essa Ferrari 2.0 de elevada quilometragem.

-Hahaha…adorei isso, meu querido Fiat usado e revisado!

Bateria da paixão recarregada e humor ferino na ponta dos cascos, um abraço apertado e um demorado beijo caliente selou a reconciliação do novo-antigo casal.

-Vamos lá para dentro brindar e anunciar nosso novo status?, convidou Sofia.

-Vamos, sim, meu amor! Só mais uma coisa…

-O que é, meu amor?

-A búfala não precisa exagerar, tá bom?

Perplexos, os convidados que estavam por perto não conseguiram deixar de se assustar com as sonoras gargalhadas emitidas conjuntamente pelo feliz casal.

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