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Arnaldo Carvalho ou Wendell Abreu?

Arnaldo Carvalho, jornalista de renome e com trânsito na alta cúpula do poder em Brasília, poderia usufruir de uma aposentadoria regada aos prazeres mundanos da vida. Mas não! Faltava-lhe algo, próprio de quem havia saído de Del Castilho, bairro do subúrbio carioca: o reconhecimento popular.

O sujeito, no entanto, não poderia simplesmente mudar o estilo austero, que já era sua marca registrada. O que iriam pensar os seus fiéis leitores? Certamente diriam que estaria acometido de demência ou Alzheimer ou até coisa pior. Sim, um surto psicótico, talvez provocado por uma mistura de medicações controladas. Nada que um médico, com a devida paga, não pudesse atestar.

Madrugada de sexta-feira, princípio de novembro, adormeceu, apesar do temporal carregado de raios e trovões. Acordou quando a manhã galopava para a hora do almoço. Espreguiçou-se, como há muito não o fazia. Sorriu e teve ímpeto de se inscrever em alguma maratona, mas logo declinou dessa loucura. Logo ele, cujo único esporte sempre fora digitar laudas e laudas para os diversos jornais que havia trabalhado. No máximo, uma pelada nos finais de semana, quando se sentava confortavelmente em uma cadeira à margem do campo, copo de cerveja na mão, de onde incentivava os colegas de redação ou, no máximo, era guarda-meta.

Quando entrava em campo, Juarez, fervoroso torcedor do Botafogo, chamava Arnaldo de Wendell, antigo goleiro dos anos 1970. Arnaldo, flamenguista roxo, se segurava para não xingar o amigo. Queria, por motivos óbvios, ser chamado de Raul, mas não rolava.

Pois lá estava o Arnaldo com uma generosa xícara de café preto, duas torradas e, por recomendação da Ruth, a esposa, meio mamão com sementes.

— Meu bem, não há prisão de ventre que resista. Mas tem que comer todos os dias, hein!

Assim que terminou, encheu a xícara mais uma vez e foi até a sacada do apartamento no Sudoeste. Tomou um gole e, quando já estava novamente com o café próximo aos lábios, eis que parece ter escutado alguém chamá-lo. Quer dizer, não exatamente Arnaldo ou Arnaldo Carvalho, como raramente o faziam. Mas Wendell.

Arnaldo tomou um susto e quase queimou os lábios com o café. Olhou desconfiado para os lados, mas nada. Por um instante, pensou que aquilo não passava de coisa da sua cabeça, até que, uma vez mais, porém de modo contundente, ouviu a mesma voz.

— Oh, Wendell! Tá surdo?

— Quem está falando? Onde você está?

— Ah, para com isso! Você sabe muito bem quem eu sou.

— Sei?

— Sim!

— Desculpe, mas não me recordo. De onde nos conhecemos?

— Sou o seu alter ego.

— Alter ego?

— É.

— E por que você me chamou de Wendell?

— Gosto de Wendell. É sonoro. E, convenhamos, muito melhor do que…

— Do que o quê?

— Ué, você sabe.

— Sei?

— Arnaldo ou…

— Ou o quê?

— Raul.

— Raul?

— É. Nada a ver. Além do mais, Raul popular é só o Seixas.

— Hum!

— Abreu tá bom?

— Abreu?

— É.

— É o quê?

— Wendell Abreu. É o nome que vai te fazer popular.

— Abreu? Peraí! Abreu é aquele Loco que acabou com a gente em 2010. Não pode ser Coimbra?

— Não. Abreu é melhor.

— Mas eu sou Mengão. Coimbra é do Zico.

— Abreu e não se fala mais nisso.

— Tá! Mas qual é o plano?

— O lance é o seguinte. Tu tem que fazer o dejejum exatamente como você fez hoje. Café preto, duas torradas, meio mamão com semente e, em seguida, pegue mais uma xícara de café e venha para cá. Se você fizer isso do jeito que tô te falando, todos os dias você vai receber uma, digamos, inspiração. Daí, é só usar o moleque doido de Del Castilho, que está guardado bem aí no fundo desse coração carregado de sentimentos e muito samba no pé.

Arnaldo Carvalho, quer dizer, Wendell Abreu, seguiu as orientações de seu alter ego e, já no dia seguinte, escreveu um texto que quase fez a esposa morrer de tanto rir. Mesmo assim, ainda na dúvida, pensou por quase uma hora se iria encaminhá-lo ao editor do jornal. Ruth até tentou convencer o marido, mas quem deu o empurrão final foi o alter ego.

— Que você está esperando, Wendell?

— Tem certeza?

— Num tô te falando?

— Mas tem que ser Wendell Abreu?

— Não foi o que combinamos?

Arnaldo, finalmente, mandou o texto para o editor. Disse que era um grande amigo de Del Castilho, cujo texto era uma pintura.

— E o cara se chama mesmo Wendell Abreu?

— Por incrível que pareça.

— Bem, já que você está recomendando, vai ser manchete.

Choveram mensagens e telefonemas como a redação do jornal nunca havia visto. Todos queriam mais textos do tal Wendell Abreu, que se tornou coqueluche dos leitores da capital. E o sucesso foi tamanho, que começou a provocar certo ciúme no Arnaldo Carvalho, que precisou fazer terapia até assimilar aquela loucura.

Tirando a Ruth, Arnaldo e o seu alter ego, ninguém desconfia que Wendell Abreu é, vá lá, mero devaneio de um jornalista frustrado. Seja como for, agora ele é muito mais popular do que jamais imaginou. E ainda pode se dar ao luxo de passear tranquilamente na rua sem que ninguém venha lhe pedir para tirar uma selfie.

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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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