Parte de minhas recordações mais caras, amanhecer no Mercadão de Madureira ou no Suvaco de Cobra, na Penha, era o que de melhor havia para alimentar minhas carências de choro e de sono. Por conta da simples alegria de viver, me faltavam lágrimas e sobrava sono. Lembranças de uma época distante, mas sempre na memória de um velho e querido amigo de reminiscências, o melhor do encerramento das intermináveis madrugadas era a chegada na Padaria Baronesa, no Largo da Taquara, em Jacarepaguá.
Era ali que a gente – eu e Aécio Amado, parceiro de labuta e de conversa fiada – se resfolegava da fadiga noturna. A média com pão de forma com manteiga na chapa servia de alento para o corpo cansado, mas calejado dos insistentes e festivos sacolejos no bate-coxa das gafieiras da Praça Tiradentes. Tudo nos conformes, inclusive com o sapato bicolor, a cueca samba canção e o lenço no bolso esquerdo da calça para secar o suor do rosto das madames. O samba miudinho no pé era o chamariz. Faltava dinheiro, mas sobrava lábia, criatividade e força no mancho.
Costumeiramente anunciada como torta, a presença torta de um sujeito direito durou o tempo necessário para que eu descobrisse que a vida realmente é uma peça de teatro que não permite ensaios. Por isso, obviamente com mais parcimônia, canto, choro, danço, sorrio e vivo intensamente. Não faz parte do meu perfil esperar que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos. Nossa existência é rápida e frágil. Daí a necessidade de eternizar nossos melhores momentos. Como diz o amigo Aécio, o tempo passou, mas permanecemos em êxtase e em constante aventura.
Não perco tempo, pois, embora seja pura magia, a vida passa num piscar de olhos. Para mim, cada minuto pode ser o último. Eis a razão pela qual sonho acordado e não me imagino tendo remorsos quando a velhice me alcançar. Como o futuro a Deus pertence, vivo o que posso do presente sem medo algum de enfrentar os fantasmas do passado. Seguindo a máxima de Zeca Pagodinho, deixo a vida me levar sempre sonhando coisas impossíveis e normalmente dizendo o que nunca disse para as pessoas que amo.
Movido pela sonoridade das canções que me fazem viajar pela essência da vida, sei que não tenho mais a cara que eu tinha. Olho no espelho e percebo “que a cara que vejo já não é mais a minha”. O que fazer? Tentar inverter a ordem negativa da poesia de Nando Reis e de Arnaldo Antunes e, mesmo achando tudo muito estranho, me adaptar ao fôlego que ainda resta. O que nunca direi é que “os anos se passaram enquanto eu dormia”. Por enquanto, me mantenho firme às convicções do filósofo Friedrich Nietzsche, para quem “o que não provoca minha morte faz com eu fique mais forte”.
O tempo passou de repente. Pelo menos me antecipei à rapidez do relógio e aprendi a não ser controlado pelos meus atos. Também aprendi que para derrubar uma árvore na metade do tempo é preciso passar o dobro do tempo amolando o machado. Não morrerei de saudades quando começar a pensar em deixar esse lado da vida. O céu é meu limite. Vem do alto a certeza de que, independentemente de a vida ser efêmera, as lembranças são eternas.
……………….
Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras
