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As Migalhas do Poeta: a escrita como caminho de volta

Nascido no Rio de Janeiro em 1986, Guilherme de Queiroz C. da Rocha carrega em sua trajetória a rara confluência de múltiplas vocações. Educado no tradicional Colégio São Bento e formado em Direito pela UFRJ, em 2010, cedo encontrou no mundo jurídico um espaço de rigor e disciplina. Advogado de carreira, hoje coordena uma equipe em empresa estatal, onde ingressou por concurso público, especializada em contratos administrativos. Mas não parou por aí: em 2022, graduou-se também em Psicologia, abrindo consultório clínico e acrescentando uma nova dimensão ao olhar que sempre cultivou sobre a condição humana.

Esse olhar, no entanto, já se adensava muito antes. Na adolescência, as leituras de Mário Quintana, Manoel de Barros, Fernando Pessoa e Paulo Leminski o despertaram para a escrita criativa. Daí nasceram cursos, exercícios, tentativas — até que, em 2024, a poesia enfim se cristalizou em seu primeiro livro, Esta leitura é gratuita (Editora Patuá). Um título provocativo para uma estreia que, na verdade, anuncia a generosidade de quem compartilha, em versos, fragmentos íntimos de sua própria jornada.

A escrita, para ele, tornou-se ritual. No celular, o bloco de notas é confidente discreto, guardando cada lampejo como quem recolhe orvalho antes de evaporar. Inspirado pela teoria dos mini hábitos da psicologia comportamental, Guilherme impôs a si mesmo uma disciplina simples e eficiente: escrever ao menos uma frase por dia. Esse gesto mínimo tornou-se divisor de águas, um compromisso com a criação, onde frases efêmeras podiam se perder, mas, em outras vezes, florescer em poemas plenos de sentido. Até que resolveu colocá-los em livro.

O processo de seleção, entretanto, exigiu rigor. Não bastava reunir versos soltos; era preciso costurar um diálogo interno entre eles, dar-lhes coerência, quase uma narrativa secreta. Para isso, contou com a crítica sensível do poeta Luca Brandão e com a criteriosa revisão de Valéria Lopes, amiga dos tempos de faculdade de Psicologia. A escolha da editora foi mais um rito de passagem, superado com paciência e persistência, até que a obra finalmente encontrasse casa.

Quando o livro veio à luz, o feito foi mais que editorial: foi íntimo, quase confessional. O poeta fala da publicação como ato de partilha radical, expor o inconsciente ao mundo sem esperar retorno, oferecer palavras tanto a conhecidos quanto a estranhos. Na sua própria definição, trata-se de um gesto de amor: amor próprio, amor fati, e sobretudo um amor empático, que ultrapassa fronteiras e acolhe no outro um reflexo de si mesmo.

O produto da autodisciplina do poeta, tão da natureza de sua personalidade, pode ser acompanhado em seu perfil no Instagram (@guiesuaspoesias), onde, ao lado de versos seus, tem a generosidade de divulgar o de outros poetas independentes de todo o Brasil, em diferentes estilos.

“Criar algo verdadeiro”, ele explica, “é praticar a honestidade da expressão pessoal. Acredito nessa verdade que se derrama em letras: inspiração quase espiritual unida à lapidação material.”

Esse mergulho na palavra não é apenas estético; é também existencial. Guilherme vive o presente com atenção plena, mas admite que a poesia é atravessada pelo passado e pelo futuro. Entre lapsos de memória, escreve também para preservar impressões, como quem captura instantâneos de um mundo em movimento. Ao revisitar os textos, a vontade de mexer, aparar, corrigir é constante. “É como se aquele poema já não coubesse na consciência que tenho hoje”, confessa.

Longe de ser um defeito, esse descompasso é, para ele, a própria prova da transformação. O texto permanece como testemunho do caminho, como migalhas de pão deixadas pelo percurso. “Se um dia me perder”, diz, “saberei como voltar.”

Assim, sua poesia se afirma como duplo gesto: prática de presença e fio condutor da memória, preservando fragmentos que poderiam se dissolver no esquecimento, mas que, em versos, encontram a chance de permanecer.

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Cassiano Condé, 82, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.

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