As presas surgiram primeiro. Eram curvas, grandes e amareladas, como as de um lobo ou outra fera. E afiadas, tiraram sangue de um dedo quando as tocou. Osíris as percebeu quando escovava os dentes, diante do espelho. E notou, intrigado, que, ao tocá-las sem olhar a imagem, não havia nada: as presas sumiam e a gengiva estava perfeita, macia ao tato e não dilacerada, como via no reflexo.
Intrigado, decidiu marcar uma consulta com o dentista. Antes do dia marcado, porém, surgiram as garras, de unhas enormes e sujas, como se ele tivesse escavado a terra com as mãos. Viu-as pelo espelho, e mais uma vez, ao olhar direto para baixo, não viu nada, somente as mãos enrugadas e macias de um idoso que nunca empunhara uma enxada, que jamais realizara um dia de trabalho braçal em sua vida.
Apareceram em seguida as placas escamosas, a lhe cobrir o dorso. Tudo somado, ele parecia uma versão bípede de um dragão-de-komodo, saído direto dos pesadelos de um geneticista enlouquecido.
A essa altura apavorado, ele se perguntou que diabo estava acontecendo. Seria uma atualização, para a vida real, de O retrato de Dorian Gray? No romance de Oscar Wilde, o personagem conserva toda a juventude e poder de sedução, enquanto um retrato seu vai se transformando, ficando monstruoso, espelhando seus vícios e sua podridão moral. Mas Osíris sabia que não era um pecador da pesada; só cometia os pecadilhos de tanto santo dia, nada que o condenasse o inferno – ou que o tornasse fisicamente um monstro. Afinal, chegou à conclusão de que se tratava de algo inevitável, uma espécie de doença autoimune, não do corpo, e sim do psiquismo.
“Pelo menos, só vejo o reflexo do monstro”, pensou. “E só eu vejo, os outros nada percebem de estranho, já testei”.
Uma tarde, Osíris caminhava pela rua, tomando o cuidado de não observar sua imagem refletida no vidro de uma vitrine ou em qualquer superfície semelhante. De repente, uma menininha, junto à mãe, apontou para ele e berrou:
– Maiê, olha o velho feio!!!
“Agora ferrou, crianças conseguem me ver”, pensou, amargurado. Mas notou que a criança não estava com medo, nem chorava; em vez disso, abriu um sorriso, mostrando as pequeninas presas.
– Maiê, podemos ficar com ele? Preciso de um papai! – insistiu a filhote de monstro, agarrando a mão da mãe com as garrinhas.
A mãe/a fêmea sorriu para ele, rolando lascivamente a língua entre as presas.
– Venha conosco – convidou. – A cada dia ficamos mais numerosos, surgem outros, velhos, jovens e crianças.
Osíris aceitou. Tinha muito a aprender; de saída, a dominar o mecanismo de se mostrar; em seguida, e mais importante, a lidar com os humanos – era a primeira vez que pensava nas demais pessoas como pertencentes a outra espécie. Tinha de saber como derrotá-los (matá-los e, sim, devorá-los, não ia mentir a si próprio) para assegurar a segurança do bando (da sua espécie).
Antes de dar a mão à fêmea e à filhotinha, Osíris parafraseou baixinho um verso de Camões, no poema épico Os lusíadas:
“Cesse tudo que a musa antiga canta, que uma espécie mais nova e mais mortífera se alevanta!”
