Na mitologia grega, o titã Prometeu roubou o fogo dos deuses e o entregou aos homens. Enraivecido, Zeus o acorrentou a um rochedo, onde uma águia vem diariamente devorar-lhe o fígado. À noite, o órgão se regenera, e o castigo continua no dia seguinte. (Mais tarde Hércules o libertou, mas isso é outra história.)
Um cartunista brasileiro (acho que Jaguar, minha memória é uma lama) representou o episódio, e fez a águia proferir palavras imortais:
– Azar o meu, que detesto fígado!
A versão cartunesca do mito de Prometeu foi uma das inspirações do texto a seguir. A outra fonte inspiradora foram os versos magníficos de Homero Manzi, no tango El último organito.
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Conversa de equinos
As rodas enlameadas da carroça com o realejo avançam devagar pelo bairro pobre de subúrbio. Conduz o tocador do realejo, as moças do coro e um macaquinho, e é puxada por dois cavalos, um esquelético e outro manco.
– Falta pouco, ainda bem – disse o quadrúpede magrinho. – Já vejo a casa da marquesa e do marquês.
– Nobres? Nesse bairro pobre? – espantou-se o cavalo manco. Era sua primeira viagem, não conhecia ainda o caminho das pedras, quem era quem, a elite (sic) no local.
– Falta de grana, che. O pior é que são muito pálidos, já houve quem insinuasse que são vampiros.
– Credo! Tenho pavor dessas coisas! – exclamou o manco, tentando persignar-se. Não conseguiu, equinos têm enorme dificuldade para fazer o sinal da cruz, mas, todos sabem, o que vale é a intenção.
– Por que vocês tão reclamando? Gosto de vir aqui – observou o macaquinho.
– Lógico, pra você é uma festa. Vive cercado de crianças, elas adoram suas macaquices – retrucou o cavalo fraquinho. – Eu e meu colega ficamos com a parte pesada, levar a carroça, o realejo, você e os humanos bairro adentro. Qualquer dia eu bato as ferraduras aqui mesmo!
Continuaram a avançar, deixaram para trás a decadente mansão do casal pálido e se detiveram em uma esquina.
– Finalmente chegamos! – disse a cavalgadura esquelética, e informou ao companheiro. – O realejo sempre executa suas canções diante daquela casa. Em respeito e homenagem à falecida moradora, uma senhora que morreu cansada de tanto amar (leiam o conto Morrer de amor).
– Credo! – repetiu a besta manca. Dessa vez, porém, não tentou persignar-se.
Rodeado pela multidão, o realejo começou a executar suas canções. Lá pelas tantas, o pele e osso observou:
– Sabem, um célebre compositor de tango escreveu que, no dia em que o realejo desaparecer, a alma do subúrbio ficará sem voz. Então nosso trabalho é importante, é o que me consola.
– Mas só toca tango, nunca um sambinha, nunca um rock pauleira… – contrapôs o coxinho. E num rasgo poético que talvez encantasse Homero Manzi, compositor de El último organito:
– É como se o realejo fosse um moinho que recebesse pedaços da vida sofrida da população pobre e os moesse, os transformasse em tangos… – e concluiu, revirando dramaticamente os líquidos olhos equinos, retomando, sem saber, o mito de Prometeu (cavalgaduras argentinas são umas bestas em termos de mitologia grega) e antecipando em várias décadas o cartum brasileiro:
– Quando não viermos mais, azar o deles. Até lá, azar o meu, que detesto tango!
