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Atração e pavor

Cada um avança pela vida em meio a uma sucessão de oposições. Charles Dickens o expressou magnificamente na abertura de Um conto de duas cidades: “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a primavera da esperança, o inverno do desespero (…)”.

No caso de Rogério, a oposição primordial era mais simples: ele tinha atração pelas alturas, ele tinha pavor de alturas.

Na infância e na adolescência, prevalecia a atração. Ele adorava ir a um parque de diversões, por mais pobre e desaparelhado que fosse. Gastava toda a mesada na roda-gigante e na montanha-russa; quando a grana acabava, voltava para casa triste, querendo mais.

A oposição atração-pavor se manifestou aos 16 anos. Rogério estava num parque de diversões bem pobrezinho e comprou um bilhete para a montanha-russa. Embarcou, curtiu antecipadamente a adrenalina, mas logo verificou, preocupado, que a barra de segurança estava quase solta, presa por apenas um parafuso. Imaginou o peso de seu corpo pressionando-a nas curvas e desistiu da viagem.

-Me deixem descer! – gritou. Uma, duas vezes.

Os empregados do parque se aproximaram. O rapaz mostrou-lhes que a barra estava praticamente solta. Falou alto, para que os outros vissem o que acontecia e não o julgassem um covarde. Os empregados deram de ombros e, em silêncio, deixaram-no descer e devolveram o dinheiro. Os demais passageiros não zombaram dele; em vez disso olharam-no de um jeito entre envergonhado e desafiador, como quem diz, “É, você tem razão. Mas vou correr o risco assim mesmo, só tenho dinheiro para uma volta na montanha-russa”.

Foi a última vez que Rogério foi a um parque de diversões.

A oposição manifestou-se com força total quando Rogério já estava com 25 anos e morava numa quitinete, num 12º andar. Uma namorada doida de pedra não aceitou o fim do relacionamento e sentou-se na janela, de costas para o vazio. Balançava o corpo e dizia:

– Se você terminar comigo, eu me jogo!

Ele ficou apavorado e, ao mesmo tempo, fascinado. Tremia ao antever o corpo caindo até se quebrar no chão, 12 andares abaixo; ao mesmo tempo, adorou a sensação de dispor da vida de alguém. Ele sabia que ela não iria pular, era louca mas não tão louca; mas quase pagou pra ver.

Rogério não terminou com a chantagista. Em vez disso, ficou com um medo absoluto de alturas, suava frio só de ver empregados num andaime, limpando a fachada dos prédios próximos.

O tempo passou, a namorada louca foi desvairar em outra freguesia, o pavor pelas alturas cresceu sem parar. Quando ele saía de casa, evitava olhar para cima, de medo de ver alguém caindo. Mas a atração pelas alturas continuava viva, escondida, como uma cobra preparando o bote.

Ela se manifestou quando Rogério, já com 50 anos, divorciado, sem filhos, dois gatos, inclinou-se na janela do apartamento – de dois quartos, a quitinete pertencia ao passado – e olhou para baixo. Sentiu uma vontade doida de pular; em vez disso, porém, deixou os óculos caírem pela janela. Fez isso como uma oferenda a alguma divindade misteriosa, eles eram uma parte sua. Depois, mesmo sem enxergar direito, ficou olhando, respirando fundo, para as hastes e lentes quebradas.

Na crise seguinte, uns dois meses depois, ele decidiu realizar a oferenda de um ser vivo. Colocou o gato de que menos gostava na janela e correu para empurrá-lo. No último momento, porém, desviou-se e não atirou o bichano. Este pulou para o chão e afastou-se calmamente, enquanto o homem tremia dos pés à cabeça.

Dias depois, ele acordou sem um pingo de pavor pelas alturas. A atração era absoluta. Tomou café, tomou banho, vestiu-se, fez carinho nos gatos, chegou à janela e mergulhou.

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