Notibras

Bater o martelo de justiça mal feita é avalizar a injustiça

A prisão de um ex-presidente da República é um fato que transcende a figura do indivíduo. Não se trata apenas de uma biografia marcada por processos ou sentenças, mas de um acontecimento que projeta sua sombra sobre a imagem internacional do país e sobre a própria confiança interna nas instituições. É inevitável que a detenção de quem já exerceu o mais alto cargo da nação se converta em símbolo, seja para demonstrar força da lei, seja para expor as fragilidades do sistema judicial.

Há quem sustente que a prisão de um presidente seria demonstração de maturidade democrática. A narrativa é sedutora: ninguém estaria acima da lei. Contudo, na prática, essa leitura é simplista. O que deveria ser um gesto de afirmação do Estado de Direito frequentemente se transforma em espetáculo, com efeitos danosos para a percepção externa do país e para a coesão interna. Não se trata de blindar ex-presidentes de sua responsabilidade jurídica, mas de reconhecer que, quando o processo é mal conduzido, a justiça deixa de cumprir sua função e se converte em injustiça.

O Brasil já viveu esse dilema. Luiz Inácio Lula da Silva permaneceu mais de 500 dias encarcerado. Sua liberdade foi restabelecida não porque tivesse sido absolvido, mas porque o Supremo Tribunal Federal reconheceu que seu julgamento não havia respeitado os ritos e garantias processuais devidos. A anulação não apaga a suspeita de erros, mas evidencia que a pressa ou a contaminação política nos julgamentos corroem o sentido de justiça. A consequência foi paradoxal: Lula, depois de preso, voltou a se candidatar e reassumiu a Presidência, com as cicatrizes de um processo falho marcando não apenas sua trajetória, mas a credibilidade das instituições que o julgaram.

Hoje, assiste-se a fenômeno semelhante com Jair Bolsonaro e integrantes de seu núcleo político. Independentemente das convicções individuais sobre sua conduta, a questão que se coloca é se os julgamentos têm obedecido à técnica, à legalidade e às garantias constitucionais. Quando o Judiciário parece ceder ao clamor político ou midiático, instala-se a percepção de politização da Justiça e isso é corrosivo. Não há democracia sólida onde as cortes se transformam em arenas de disputa ideológica.

A justiça mal feita, ainda que movida pela intenção de punir culpados, é sempre uma injustiça. Quando se atropelam prazos, quando se flexibilizam regras probatórias, quando se confundem instâncias, o resultado é a fragilização da própria ideia de imparcialidade. É esse o ponto crucial: não se discute se ex-presidentes podem ou não ser responsabilizados. Devem sê-lo, quando há provas robustas e julgamento regular. O que está em jogo é a forma. Sem ritos e sem respeito à lei, o que se produz é instabilidade, não justiça.

É necessário compreender que a democracia se apoia em instituições sólidas, capazes de julgar até os mais poderosos sem se contaminar por paixões políticas. Se o processo contra Lula mostrou a falência de uma operação judicial que confundiu justiça com militância, o processo contra Bolsonaro e aliados expõe risco semelhante. A história não perdoa esses desvios: a posteridade não verá líderes condenados ou libertos, mas países que falharam em aplicar justiça de modo equilibrado.

A prisão de um presidente da República, quando não amparada por um processo exemplar, arranha a imagem do país perante o mundo. O que poderia ser visto como prova de responsabilidade institucional converte-se em evidência de instabilidade. A democracia não se mede pela quantidade de presidentes encarcerados, mas pela capacidade de julgar com serenidade, sem ceder a pressões, e de aplicar a lei de modo igualitário. É essa a medida da maturidade democrática.

……………………

Everardo Gueiros é advogado

Sair da versão mobile