Uma passagem rápida por Brasília me estarrece pouco depois do desembarque no JK. Não pelo frio que faz na cidade, se comparado ao sol do litoral pernambucano. Mas, sim, o jogo sujo de pretensos candidatos ao Palácio do Buriti nas eleições do próximo ano. Ouvi boquiaberto nesta segunda, 12, a imaginação fértil de uma dessas figuras. Algo que, todos sabemos, no frigir dos ovos vai terminar com mais promessa que resultado.
O sol tímido da sexta-feira, 8, sequer chegava à terra poeirenta de uma das maiores comunidades do Distrito Federal, quando o cidadão lá aportou de mala (comprada no Rio de Janeiro) e cuia, arrastada em uma feira do Maranhão. Trocou o conforto de uma bela residência no Plano Piloto para ser ‘um deles’- o eleitor de baixa renda, que passou a ouvir que com ele no Buriti, o pão da favela teria o mesmo sabor das guloseimas do Lago Sul.
Desceu do carro importado, mandou que o motorista desaparecesse e pôs-se a procurar um barraco para alugar. Suava, fruto de um nervosismo de iniciantes, e sorria aquele sorriso ensaiado. Era um sujeito já sem gravata, embora com roupas de grife. “Quero viver de igual pra igual com vocês”, anunciou, como se tivesse acabado de receber um passe livre para o céu da credibilidade popular.
Depois de acomodado em um imóvel simples, com telhado de zinco, fez-se de fake de socialista, foi à rua, arregaçou as mangas, ajeitou aquelas feições do Coringa e foi logo se enturmando. O primeiro ponto de parada foi a tendinha do Zé do Pinga. Virou um copinho de cachaça como quem mata a saudade de uma infância que nunca teve. Chegou, inclusive, não se sabe se por coragem ou desespero eleitoral, a fumar um negócio que nem o dono quis assumir.
Seguiu o roteiro desenhado por seus marqueteiros – aliás, ele mesmo, homem de comunicação, profissional da área – e jantou no barracão da Dona Neném, com direito a prato improvisado. “Aqui é raiz, minha gente!”, dizia, cuspindo as consoantes com gosto. Até parecia que o homem tinha descoberto o ouro.
No sábado, amanheceu no terreiro. Pediu bênção ao guia, bateu cabeça no gongá, bebeu água da cisterna e se declarou “filho da terra”. Mas a incorporação foi rápida. O guia olhou bem no olho dele e largou a sentença:
— Esse aí é safado. Hoje pede seu voto, amanhã manda a polícia te prender, disse, tamborilando o velho samba de Walter Meninão e Pedro Butina, sucesso na voz de Bezerra da Silva.
A vizinhança riu, meio sem graça, meio sabendo que era verdade. E o pior: a frase ecoou como anúncio de previsão do tempo — e sem chance de errar.
O tal candidato ainda circulou pelas ruas, tirando selfie com cachorro vira-lata, jogando dominó na praça e prometendo asfalto, saneamento, internet grátis e até ressuscitar a festa junina que o último administrador da RA matou. Depois seguiu para o barraco alugado, deixando um cheiro de perfume caro e um punhado de folders com críticas aos governantes, que já servem pra forrar a gaiola do periquito.
O domingo, Dia dos Pais, não foi diferente. A figura era alvo de comentários em todos os lugares.
— Rapaz, tu viu quem mudou para a comunidade? — perguntou o Tonho, já ajeitando o copo de cachaça na mesa de ferro.
— Vi sim… sem gravata, camisa aberta no peito, sorriso de quem acha que é da família. — respondeu o Zé, mastigando devagar um pastel de vento.
Ele chegou como quem conhece o terreno, mas tropeçou logo no primeiro degrau. Foi na tendinha do Seu Bibico e pediu “o de sempre”. Só que ninguém lembrava qual era o “sempre” dele, então meteram um copinho de cana na mão. Virou como se fosse veterano, piscou pra galera e ainda arriscou uma tragada em outro enrolado suspeito que o Cabelinho ofereceu.
— Ah, mas não parou por aí — continuou Tonho. — O homem foi jantar no barracão da Dona Neném. E tu acredita que ele usou lata de goiabada como prato?
— Pra fazer charme, né? — disse o Zé. — Aposto que em casa nem sabe onde fica a cozinha.
E a roda de dominó, que até então só ouvia, caiu na gargalhada. O Candidato Caô ainda tentou improvisar um discurso:
— Meu povo, eu sou um de vocês. Quero viver igual!
O Seu Bibico não perdoou:
— Igual só se for no zap, porque no boleto do condomínio não vai ter meu nome não!
Voltou a tirar selfies, agora ao lado do Naldo – que cobrou uma dose em troca -, comeu um pedaço de bolo de milho e prometeu mundos e fundos. Na velha cama, à noite, fechou os olhos com a certeza de que tinha “ganhado o coração do povo”.
Mas no boteco todo mundo já sabia: Caô-Caô de ontem é o mesmo Caô-Caô de hoje, só muda o figurino. Na hora do voto ele é teu amigo; na hora de governar, te trata como número de protocolo.
E o Tonho ainda concluiu, erguendo o copo:
— Esse aí é igual pinga ruim, porque arde na entrada, amarga no meio e dá ressaca depois.
Não se sabe quanto tempo o rapaz aguentará esse novo estilo de vida. Muita poeira, vagão de metrô que se compara a lata de sardinha… Gente do seu entorno aposta que é aventura breve.
Particularmente, avalio que logo, logo ele desiste dessa empreitada. Mesmo porque, quem conhece o jogo sabe que o Caô pode até mudar a embalagem, mas o recheio continua o mesmo. O “político raiz” de hoje é só o mesmo figurante de sempre, com roteiro atualizado. E quando a urna fecha, a gravata volta, o carro sobe a ladeira e, lá do gabinete refrigerado, ele acena: “Valeu, meu povo!”.
Depois… bem, depois, o povo paga a conta.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
