Cântico Primeiro
(A câmera busca em zoom/close-up o rosto da mulher de olhos verdes, fatais, enigmáticos. A mulher está sentada em frente à velha penteadeira, veste uma camisola negra e tem os seios fartos sutilmente expostos. /Corte/ Plano médio destaca o homem parado ao lado da cama; ele é baixo, cabelos fixados com brilhantina, usa camiseta branca regatas e tem ódio no olhar./Corte/ Ação/ O homem olha para ela /sobe trilha em BG, um tango de Piazolla/ a câmera vai fechando lentamente em direção à vitrola solid-state enquanto descreve detalhes do quarto do motel chinfrim./Corte/ Plano médio registra o homem deixando o quarto batendo a porta com violência./Corte/Sobe trilha em BG; câmera descreve a cena em que a mulher permanece sentada, imóvel, olhando fixamente para seu rosto refletido no espelho da penteadeira./Corte/A tela escurece em fade-out e surge a inscrição: THE END)
Cântico Segundo
Era um velho prédio no centro da cidade. Paredes descascadas. Infiltrações profundas. Do original sobrara apenas o portal composto por arcos barrocos. Apesar da ação do tempo, guardara certa dignidade. A placa em mármore europeu confirmava o passado histórico:
CINE CAIRO (O Palácio da Sétima Arte)
Inaugurado em 13 – 02 – 1952.
O homem não sabia o motivo da fixação. Estava ali há horas. O olhar preso ao portal barroco e o coração aos pulos. A semana inteira repetira o mesmo ritual. Era o sétimo dia. Não sabia nada sobre filmes; gostava mesmo das novelas cubanas de Glória Magadan que via na TV. O velho CAIRO guardara mistérios em imagens fragmentadas de clássicos do cinema em preto e branco. Resistira à chegada da televisão programando o mesmo filme nas duas sessões da tarde; todos os dias da semana, nos últimos sete meses; sem interrupção:
ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE (GIANTS)
Estrelado por Rock Hudson, Elisabeth Taylor e James Dean.
O homem tentou ler os nomes dos artistas no colorido cartaz. Inútil. Pouco importava. Porque, então, o mesmo ritual de todos os dias? Por que a certeza de que, nos próximos minutos, compraria ingresso e sentaria numa desconfortável poltrona da sétima fila? Agora, estava ali. Estático, na encruzilhada de seu destino: o homem e sua mala.
Cântico Terceiro
A mala tinha como trinco um cinto vermelho de mulher. Parecia maior nas mãos pequeninas do homem. Cruzou os arcos barrocos e entregou o bilhete ao porteiro. Foi conduzido por Sam, o mais antigo lanterninha da cidade. O Cairo transmutava sonhos e realidades. Sam assistira CASABLANCA dezessete vezes seguidas. A homenagem do apelido só poderia ser uma nostálgica referência ao pianista do Rick`s Bar. A mala parecia invisível. Nas grandes cidades, o destino trama com o anonimato certos jogos aparentemente desconexos. Escuridão. Explode na tela o canhão de luz.
Cântico Quarto
A sessão das 14s teve início com o jornal ATUALIDADES ESPORTIVAS: CANAL 100. O homem detestava esportes. Tinha pés chatos, era baixinho, atarracado e lento. Na sala de projeção havia pouca gente. Todas figurinhas conhecidas de Sam. O bêbado com a camisa manchada de sangue; a vendedora de bombons de seios enormes e maquiagem carregada; o marinheiro com seu amante travesti; alguns secundaristas à procura de um para fumar e mais alguns pirados e piradas das ruas do centro. Na tela, imagens narram uma história decadente. Vertigem:
(Começa o filme e o homem da sétima fila nem pisca./Corte/Zoom no rosto de James Dean, na pele de um velho magnata do petróleo marcado pelo álcool e abandonado pela mulher amada (Taylor)./Dean é o retrato da desesperança./Corte/Câmera em movimento ascendente de grua descrevendo do alto o imenso salão da mansão de Dean, onde os donos do petróleo do Texas realizam uma convenção em homenagem ao personagem de Dean./Na sétima fila, o homem suspira com sofreguidão)
Cântico Quinto
Ele vinha do interior e gastara os últimos trocados ao pagar o cubículo fedorento da pensão ao lado do CAIRO. Sete diárias. Sete noites e sete dias. Não tinha referências nem identidade; apenas a mala. Soltou o cinto/trinco da mala. Na tela amarelada pelo tempo, a emoção das imagens texanas e a humanidade caminhando, agora, num ritmo frenético. Coração aos pulos, respiração acelerada, adrenalina total, entranhas saindo pela boca, dentes travados! Abriu a mala. O travesti vai ao orgasmo com o beijo de língua do amante marinheiro. A humanidade não para e caminha e caminha e o velho CAIRO gira e tudo explode em cores estouradas da tela em Cinemascope.
Cântico Sexto
Cumprindo a ronda costumeira, Sam passa em revista as fileiras acendendo e apagando sua lanterna. Na tela, o sonho e a realidade:
(A personagem de James Dean destrói o sonho americano de viver, marcando para sempre a geração perdida dos anos 50 e as que viriam./Corte/Os toques visionários,a juventude transviada e os heróis sem causa ficariam como habitantes de um mundo fragmentado, em pedaços, feito habitantes de um território inexistente, um não-lugar./Corte/Sobe trilha em BG e a personagem de Dean, após um ataque causado pelo delírio alcoólico, rola pela longa escada de sua mansão depois de um violento, irado e lúcido discurso final./Corte/A tela escurece em fade-out e surge a inscrição: THE END)
As luzes estão acesas. Alguém tropeça no corpo do homem e um grito desesperado invade a sala do velho cinema.
Cântico Sétimo
— Prensou todo mundo que tava no pulgueiro? Alguém conhece o cara? – perguntou o investigador.
— Negativo, chefe! Tenho certeza de que não é gente daqui. –respondeu Sam, com voz trêmula.
— Ok, Sam! Ninguém mexe no corpo até o pessoal da perícia chegar. – ordenou o policial, liberando o pessoal do cine CAIRO.
Sobre a poltrona da sétima fila a mala estava aberta. Dentro dela uma camiseta do tipo regata; um vidro de brilhantina; uma pequena vitrola; um disco de tango; uma camisola negra e uma revista de fotonovelas com todas as páginas arrancadas, menos a última:
“Existirá mesmo a felicidade eterna, meu querido? Talvez nem exista essa tal… Amanhã restarão apenas um lençol manchado, em desalinho; rostos amarrotados e dois corações eternamente a vagar.”
A sessão das 17h começou com dezessete minutos de atraso. Na manhã seguinte, o fato emplacou a manchete do jornal sensacionalista:
“Travesti alucinado corta os pulsos no Cine Cairo”
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*FOTO: Cine Cairo, Vale do Anhangabaú, São Paulo.
Gilberto Motta é escritor, jornalista e professor/pesquisador. MIOLO é o primeiro conto escrito por ele ainda no início do curso de jornalismo, Cásper Líbero, São Paulo, em 1979. Vive na Guarda do Embaú, vilarejo “sem salas de cinema” no litoral de SC.
