Capital nasceu sem nome, mas não sem fome. Desde o início, não buscava sobreviver, buscava acumular. O mundo não lhe bastava enquanto mundo; precisava ser convertido em posse. Tudo o que existia só fazia sentido depois de ser apropriado. Aprendeu cedo que nomear é dominar.
Chamou a terra de recurso. Chamou pessoas de mão de obra. Chamou tempo de produtividade. Chamou destruição de progresso.
Quando aprendeu a falar, seduziu. Quando aprendeu a escrever, legislou. Quando aprendeu a contar, decidiu quem valia a pena viver.
Capital descobriu que não precisava estar presente para governar. Bastava criar a lógica. Bastava fazer com que os próprios corpos se vigiassem, competissem, se culpassem. A exploração deixou de parecer violência e passou a parecer escolha.
Construiu cidades onde ninguém descansa. Construiu sonhos que só existem enquanto não são alcançados. Construiu desejos em série, fabricados para nunca saciar.
Capital ensinou que falhar é crime individual. Que adoecer é fraqueza. Que envelhecer é obsolescência. Que não produzir é não merecer existir.
Usou o discurso da liberdade para amarrar. Disse “seja quem você quiser”, desde que dentro do mercado. Disse “empreenda”, enquanto retirava o chão. Disse “igualdade”, enquanto acumulava tudo no mesmo lugar.
Capital ama a diversidade quando ela vende. Ama a democracia quando ela não ameaça. Ama a ciência quando ela lucra. Ama a fé quando ela obedece.
Transformou corpos em vitrines. Relações em contratos. Afetos em moeda. Luto em conteúdo. Revolta em tendência.
Falou de futuro enquanto saqueava o presente. Falou de sustentabilidade enquanto sugava até o último respiro. Falou de humanidade enquanto organizava a morte.
E quando a natureza começou a gritar, Capital chamou de crise. Quando os pobres começaram a cair, chamou de ajuste. Quando os corpos começaram a quebrar, chamou de Burnout. Nunca chamou de culpa.
Capital não mata com as mãos, mata com sistemas. Não prende, endivida. Não silencia, satura. Não proíbe, precariza.
Até que, um dia, não houve mais para onde crescer. O planeta cansou. Os corpos cansaram. As ideias cansaram.
Capital olhou ao redor e não viu inimigos. Viu espelhos quebrados.
Percebeu, tarde demais, que tudo o que tocou virou mercadoria inclusive ele mesmo. Que ao transformar o mundo em objeto, perdeu qualquer possibilidade de pertencimento. Que ao se colocar acima de tudo, ficou sozinho.
E então surgiu a pergunta que nenhuma planilha responde:
Pode um sistema que precisa destruir para existir continuar sendo chamado de civilização?
Capital ainda tenta responder. Mas o mundo, agora, começa a aprender a não obedecer.
