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Carência do “pensar com o coração” torna inexequível a criação das memórias e histórias afetivas

Apesar de reconhecer e me curvar diante do inegável potencial papel transformador da inteligência artificial na educação, penso, humildemente, que seu uso desmedido irá contribuir tanto para a deterioração das faculdades cognitivas quanto para o enfraquecimento do pensamento crítico, por efeito da redução das inescusáveis práticas de dedicação/esforço de forma alongada e contínua no tempo, uma vez que são elas que garantem o assentamento (ou o repouso) dos elementos significativos (conhecimento) na mente humana.

Ora “se pensamos, logo existimos” segundo a filosofia de René Descartes, o que será da nossa medíocre existência, considerando o momento deste próximo passo civilizatório, onde as máquinas não apenas trabalham para o homem, mas, principalmente, pensam em seu lugar?

O prestigiado professor da Universidade de Berlim Byung-Chul Han discorreu em sua obra intitulada de “Não-coisas” que estamos caminhando para uma era denominada de “trans e pós-humana” (2023,p.131), na qual o modelo de vida das criaturas resumir-se-á, funestamente, em um “puro intercâmbio de informações” (idem) sem qualquer profundidade.

De fato, a hipercomunicação digital, a conectividade sem limites (em que se acumulam hiperbolicamente informações, amigos e seguidores à luz da quantificação) e a performação de nossas identidades narcisistas nas mídias sociais ( lugar em que encenamos nosso ‘eu’, visto que as publicações dos perfis pessoais ou profissionais se restringem, em sua maioria, somente aos dados e imagens que se desejam compartilhar, sendo a prioridade ‘parecer ser, ao invés de ser’, onde identidades são produzidas pelas informações) criam além de uma dependência excessiva das ferramentas ditas inteligentes, um inquietante quadro social de aprofundamento da solidão.

A carência do “pensar com o coração” torna inexequível a criação das memórias e histórias afetivas, as quais dão o tom colorido à vida, e não somente aquelas de natureza contextual e/ou logarítmica.

Decerto que a inteligência artificial esvaziou o olhar e a voz não só do outro, mas igualmente do nosso próprio ser, ao ponto de estarmos a pique de transformar a nossa razão humana em uma autêntica commodity. A IA, de “maneira inteligente”, vem contribuindo para a destruição da empatia, vínculos afetivos e da narrativa das surdas agitações do nosso ser.

Digo, surdas, pois o silêncio (“a pausa”), ao mesmo tempo, que interrompe a compulsão da comunicação artificial, possibilita que os sons do processo de criação da mente e manifestação do pensamento sejam não apenas ouvidos, mas sentidos pela inteligência real da vida: o espírito humano, qual seja, aquela força íntima e oculta que derrama uma luz viva de esperança e amor em nosso pujante e singular universo mental.

A pouca tinta, entendo que aquilo que só pensa, efetivamente empalidece o sentir de uma possível consciência.

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Sandra J. M. Villaverde (Instagram: @profsandra.villaverde) é professora universitária e advogada criminalista no Rio de Janeiro – RJ.

Não-coisas. Reviravoltas do mundo da vida. RJ: Vozes, 2023.

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