Eu conto, fabulo, crônico, já romanceei/novelei, já poemei, por vezes pasticho, mas há um gênero literário do qual nunca cheguei perto: as cartinhas dirigidas aos entes queridos que se foram. Não as missivas empoladas escritas nas mesas brancas kardecistas, mas as produções açucaradas, capazes de provocar coma diabético, postadas nas redes sociais.
O curioso é que uma de minhas canções prediletas – Iracema, de Adoniran Barbosa – segue esse esquema. Mas o compositor mescla censuras, do tipo “você atravessou contramão” a confissões: “Iracema, eu perdi o seu retrato”, e isso garante a leveza, o frescor do texto. Já as cartinhas da tigrada para os entes queridos parecem explorar apenas dois versos de Adoniran: “E hoje ela vive lá no céu./ Ela vive bem juntinho do nosso senhor”. Tudo se passa como se cada ente querido nosso, por mais canalha que tenha sido, ganhe asinhas e uma harpinha no pós-vida e fique bem perto de Deus. Os mais lúcidos riem dessa crença. Como escreveu o romancista norte-americano Kurt Vonnegut, “Se eu morrer (…), espero que alguns de vocês digam: ‘O Kurt está no céu agora’. Essa é a minha piada favorita”.
Eu podia continuar a soltar os cachorros contra esse (argh) gênero literário, mas prefiro dar a palavra a um dos interessados.
Plano podre, 28 de novembro de 2025
Filha, li sua mensagem. Você parece imaginar que fico o tempo todo olhando pra vocês vivos, mandando bênçãos, sorrindo e babando na gravata (eu, não vocês). Não faço nada disso, nenhum de nós faz. Em Moçambique e outras regiões africanos, os mortos de uma família juntam-se aos demais ancestrais como espíritos protetores, misto de anjos da guarda e encantados, quer dizer, pequenos deuses. Mas você é católica, acredita em anjos da guarda e santos, e eles – se é que existem – podem interceder, intervir. Nós não. Não sei se você percebeu, fomos desta para pior. Muito pior.
Pelo cabeçalho da carta, você pode perceber que não estou no céu. Nem no inferno, diga-se. Estou no que chamo de plano podre, um plano espiritual tosco pra dedéu. Mas há outros piores. Um autor (não lembro qual, minha memória continua uma lama) observou que o céu parece uma granja de perus mal administrada. Essa definição se aplica a meu plano espiritual e a todos os que conheço, administrados com a bunda.
Aqui é chato. Cha-to. É o tédio que leva a maioria de nós às filas para reencarnar. Melhor voltar a ser bebê, se cagar o tempo todo, ter de aprender tudo de novo, do que permanecer nessa pasmaceira. Então, só tenho um conselho pra você: viva enquanto está viva, solte a franga, meta o pé na jaca. Porque, depois de bater as botas, não dá, a gente se torna mais um peru na granja. Ou pior, um chester.
Se quiser perder seu tempo me mandando doces mensagens, vá em frente. Mas, por favor, não acenda velas por minha alma, que nem você fez outro dia. Velas acesas produzem calor, e aqui já é quente adoidado…
Beijos afetuosos procê e pras crianças.
