Celestiano era sujeito respeitável no Cruzeiro Velho, especialmente aos olhos dos frequentadores da ARUC, a mais tradicional escola de samba do Distrito Federal. E quem visse a criatura cercada de bajuladores não seria capaz de imaginar que nem sempre a situação havia sido aquela.
Bem, para que você que está me lendo possa entender de que forma o velho Celestiano veio parar aqui com tamanha reputação, precisaremos retornar ao longínquo ano de 1974, quando ele desfrutava o frescor dos 28 anos. Isso sem contar que o gajo era tido como bonitão, apesar da completa falta de recursos para bancar até mesmo uma simples cerveja para os brotinhos que lhe lançavam olhares ambíguos.
De índole quase dócil, Celestiano acabou cruzando o caminho de Lúcio, cujo pavio curto era notório naqueles idos. Um brigão, mas que não sabia se defender com eficácia, haja vista os diversos hematomas que cismavam em aparecer a cada contenda. Bastava um olhar enviesado, um pisão ou uma esbarrada de ombros para o sujeito se eriçar que nem galo de briga. E era lapada para todo lado.
De boa estatura e provido de carcaça desejável para um lutador, Celestiano não via motivo para brigas. Todavia, não suportava covardia, ainda mais diante dos seus olhos, como a que ocorreu naqueles idos. Lúcio, cercado por quatro tipos mais parrudos, parecia ter encontrado o seu fim. Mas eis que Celestiano, sem dizer palavras, já nocauteou o primeiro e, em seguida, o segundo e o terceiro. Quanto ao quarto elemento, nem foi preciso agir, pois o tipo tratou de se evadir do local que nem rato que foge para o bueiro.
Lúcio, ainda com os punhos em riste, olhou com desconfiança para o seu salvador. Em seguida, o frangote começou a relaxar até que, finalmente, baixou a guarda.
— Obrigado pela ajuda, amigo, mas não precisava.
Celestiano sorriu amigavelmente e, como era da paz, concordou com um leve aceno de cabeça. Não seria ele a inflamar os ânimos daquele homem, ainda mais porque, como aprendera com o avô, os frangotes são os mais fáceis de serem derrubados, mas os mais complicados de serem vencidos, pois nunca desistem de lutar. Estendeu a mão.
— Meu nome é Celestiano.
— Lúcio. Prazer.
— Prazer.
Aquela briga teria sido por disputa de área de jogo do bicho. E Lúcio estava se tornando graúdo demais para os olhos dos mais antigos. Decidido que era, precisava marcar seu território. E ele ficou muito agradecido pela ajuda inesperada e, então, arrumou posição para Celestiano na firma.
Apesar das incongruências e talvez por conta delas, a amizade entre aqueles dois foi instantânea e durou até o mês passado, quando Lúcio, que enfrentara problemas de saúde, sucumbiu. É verdade que a vida do bicheiro poderia ter sido muito mais curta, já que oportunidades não lhe faltaram ao longo dos anos.
Antes de dar adeus ao mundo dos vivos, Lúcio mandou chamar Celestiano, que gozava de confortável aposentadoria em Cabo de Santo Agostinho, litoral de Pernambuco. Este, quando soube do quadro de saúde do amigo, não teve dúvida. Tomou um avião no mesmo dia e desceu em Brasília.
Foi o tempo de chegar e trocar poucas palavras com Lúcio, cuja fisionomia não deixava dúvida quanto ao quadro terminal. Celestiano se aproximou do leito, pegou a mão do antigo patrão, que disse que a firma precisava dele novamente.
— Já estou velho, Lúcio.
— Todos estamos, meu amigo. Mas meu filho não saberá tocar os negócios sozinho.
Celestiano, sem alternativa, assentiu com a cabeça. Pacto firmado, seguiu-se o seguinte interlúdio.
— Pois é, Celestiano, o fim da linha chegou pra mim.
— Que nada! Você nunca vai morrer, Lúcio.
— Quem não morre não vê Deus.
No dia seguinte, Lúcio foi enterrado no Cemitério Campo da Esperança.
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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).
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