Há 71 anos, ela velava seu irmão Sérgio, vítima de um acidente no CPOR em Porto Alegre.
Em uma semana ele iria receber a espada de oficial aos 21 anos.
Embora cursasse engenharia fora engajado na artilharia a contragosto. Acabou crivado de estilhaços por uma mina, vencida, que explodiu antes do previsto na trincheira de treinamento, em torno das doze horas e trinta minutos do dia 24 de janeiro de 1953. Sérgio sobreviveu até, aproximadamente, as dezesseis horas do mesmo dia. Morreram doze jovens praticamente da mesma faixa etária. Outros, ficaram mutilados.
A família estava com tudo pronto para ir para a praia. Esperavam só a chegada do Sergio para a partida.
Rodolfo, seu colega de CPOR, bateu à porta da casa da família de Sérgio.
Bila o atendeu. Ele pediu para ela chamar seus pais. Ela, porém, chocada com a aparência de Rodolfo, que tinha os olhos injetados, poros vermelhos e uma fisionomia de pavor, perguntou a ele o que havia acontecido. De pronto, ele respondeu novamente: — Chame teus pais! Este colega tinha estado no sábado anterior junto com outros do CPPOR na sua casa por ocasião da sua festa de aniversário.
Tomando conhecimento do acontecido, motivo de comoção, preocupação e agitação em toda a cidade; a família custou a saber do paradeiro de Sérgio, então internado no Hospital de Pronto Socorro. Havia a Polícia de Choque impedindo a aproximação de familiares e amigos ao hospital
Uma vez chegando ao hospital, foi contatado o Dr. Leo Mário Mabilde, primo de Sérgio e titular da traumatologia e ortopedia do Hospital de Pronto Socorro.
A expressão do primo e médico já anunciava o desfecho em seu comentário:
— O caso é grave.
A fotografia do tio Sérgio estampou a capa da edição extra do jornal “Última Hora”; deitado na maca, tendo a mão do padre Loebmann à sua testa.
Embora gravemente ferido, com hemorragia interna generalizada, ainda lúcido, chegou a dizer ao padre:
– Coitada da Mami. Beijo para ela.
Uma semana antes, sábado, foi a realmente feliz comemoração de seus quinze anos. Festa realizada quando estava comemorando seus dezesseis, pois que, no ano anterior, estavam com a casa em obras. A casa tinha dois pisos. As manas tinham casado e como já tinha muito espaço os pais resolveram fazer de cada piso uma moradia. Entraria mais uma renda para a família alugando a casa de baixo.
Vieram para a rua Duque de Caxias, após a venda do Estaleiro. Moravam, na Ilha da Pintada onde ela e os irmãos tinham nascido. Lá, tudo era muito bom. As festas tradicionais eram sempre festejadas com as famílias dos proprietários e as famílias dos trabalhadores que moravam na ilha ou em outros bairros da cidade.
O Estaleiro Mabilde faliu pela enchente de 41, pelas políticas públicas (início do foco modal rodoviário) e pela requisição, pelo governo, de produzir tanques. Viviam a segunda guerra mundial. A saída forçada da Ilha da Pintada, onde nasceu, e a mudança na condição de vida da família, no ano de 1948, já fora um grande e sentido baque.
Ainda assim, nada se comparado ao salto desde a culminante felicidade na comemoração de seus 15/16 anos, com tio Sérgio – este que além de permanente alegria e contagiante bom humor, era um exímio dançarino-, então presente à festa da jovem irmã com seus garbosos colegas do CPOR; até a queda no precipício da infinita tristeza e sofrimento familiar, vindo a velar o irmão e seus colegas. Um sábado dançando e no seguinte velando o mano e colegas que estiveram na festa
Uma tragédia! Restou a Vó Bila ter que suportar a sua tristeza e a carga da tristeza familiar praticamente só, aos dezesseis anos de idade.
As irmãs mais velhas casadas, tendo cada uma um bebê, casa e trabalho, se faziam presentes, mas não tinham como dar maior suporte.
O outro irmão, dois anos mais velho que ela, chegava do trabalho e se enfiava no quarto a chorar o tempo todo. Duas vezes teve que ser levado para atendimento médico.
Ela, jovenzinha e só. A mãe desesperada, sem se alimentar, com a fisionomia deformada, vestia luto. Esta ia ao cemitério três vezes por semana. Vó Bila chorava na escola e ouvia o choro de sua mãe da rua quando voltava da escola. Qual o quadro encontrado? A mãe chorando rodeada de fotos, roupas e pertences do seu mano, recortes de jornal e revistas sobre o acidente. A situação do pai e da avó não eram muito diferentes o que era impedimento para lhe darem suporte. Sua avó materna que morava junto, depois de algum tempo, foi quem percebeu a situação da moça e, com superação, estendeu-lhe suporte. Na escola pública, teve apoio de uma irmã missionária. Ficaram amigas até o falecimento desta.
Em janeiro de 1960, Vó Bila estava comemorando, dentro do possível, seu aniversário de 23 anos. Afinal, com a morte do tio Sérgio, a família estava destroçada.
Exatamente sete anos após o ocorrido, no dia 24 de janeiro de 1960, Vó Bila perderia seu pai, Vô Lito, no mesmo dia e mesmo mês que perdeu seu mano. Sua mãe, Bisa Landa, que ja estava um pouco melhor e aliviado, em parte, o luto, ficou inconsolável.
Continuava a visitar três vezes por semana o túmulo do filho e agora do seu marido. Sem conseguir assimilar a situação pela perda daquela joia, repito, contando então com apenas 21 anos, como esteve até o dia de seu último suspiro.
Restou tendo que se segurar isso praticamente só. Com 16 anos.
Então em 60 perde o pai, em 64 sofre a cassação do meu, com meu irmão contando um ano de idade e minha irmã mais velha nascida 10 dias depois do golpe. Nisso teve a sorte de contar com minha avó chegada ao Rio instantes antes da decretação de estado de sítio. Mas outra vez o chão lhe faltava. Recém-casada com meu pai admitido na Petrobrás, em primeiro lugar, como engenheiro da empresa e cursando lá pós-graduação em engenharia de processos num estalo de dedo passou a perseguido político, desempregado, cassado, fugitivo, escondido. Esse foi conhecer a filha recém-nascido dias depois do nascimento, escondido no porta malas do carro de um médico amigo da família. Ela não tem certeza, mas acredita que o generoso e corajoso amigo Dr. Afrânio de Alencar Matos, médico responsável pelo recente parto que, pouco adiante seria contato entre os escondidos, colhendo informações sobre cada um deles. Informações estas que repassava a ela, vó Bila, quando em consulta passando essa a cumprir assim a função de mula, correio.
Nisso de novo também não era “só” o baque quanto as condições materiais, mas a precipitação instantânea de uma condição de muita felicidade e ampla e maravilhosa vida e esperança para uma de terror extremo, incerteza e medo.
Cinco anos depois teria o acidente com a outra irmã. Sofreu acidente muito grave e ficou internada por quatro meses devido a graves queimaduras nas pernas em festejo de festa junina. Isso já tendo mais dois filhos. Eu então com seis meses.
Em 75 aquela nascida logo após o golpe também quase morreu vítima de atropelamento em frente à Escola.
Em 82 foi a vez do Marcio. Com uma virose (gripe suína) até hoje desconhecida, com a qual morreram 19 dos vinte que a sofreram estava com as extremidades rochas, 85% da superfície dos pulmões comprometida. Decisão do velho de aumentar a pressão do respirador assumindo a responsabilidade pela eventual explosão dos referidos órgãos iniciou reversão do processo, oxigenação, recuperação.
Não fosse tudo isso o suficiente, passo por cima de diversas ocorrências e minuências das relatadas.
É. Ela tem razão em confessar que sobreviveu. E eu em reconhecer tanta força, fibra, seu amor à vida, a todos nós seus filhos e a muito mais gente. Coração gigante, infinito. Mãe.
