Juarez era um antropólogo gaúcho fascinado pelas diferentes manifestações da cultura afro-brasileira. O samba carioca e o samba baiano, o candomblé iuorubá e o de Angola, a umbanda, a quimbanda e a mandinga dos feiticeiros, o tambor de mina e o tambor de crioula do Maranhão, a congada de Minas Gerais, o batuque gaúcho, o carnaval do Rio, de Salvador, de Recife e Olinda, o maracatu pernambucano e o afoxé da Bahia – tudo isso ele pesquisou, nos lugares em que essas manifestações culturais eram mais fortes. Outra paixão sua, paixão arrebatadora, era o tango, gostava das composições, das letras e da dança. Quando soube das origens africanas da milonga, do candombe e, segundo muitos autores, de seu ritmo predileto, todos originários da região platina, não hesitou: pediu licença na universidade onde lecionava e partiu para Buenos Aires.
Na Rainha do Prata, fez contato com pesquisadores de interesses similares aos seus e confirmou: o tango tinha mesmo raízes africanas; sua designação vinha, segundo alguns, do nome do orixá Xangô e, segundo outros, dos tambores usados no candombe, chamados de tangós. Chegou a ficar comovido ao encontrar, na boca de uma multidão de descendentes de imigrantes, termos bem familiares, tais como congos e mandinga. Já delineava seu próximo objeto de pesquisa: as influências recíprocas entre a América de língua portuguesa e a de língua espanhola, um processo que levara o candombe do Uruguai e da Argentina para Minas Gerais e estava levando, a todo vapor, a umbanda e o candomblé para a bacia do Prata.
E, claro, sua vida em Buenos Aires estava longe de se limitar à pesquisa. Havia muitas casas de tango a conhecer, na companhia de lindas colegas que o ensinavam a bailar – preliminar para uma noite de delírio. Foi uma delas, Consuelo, com quem já transara duas vezes, que o convidou:
– Vás a conocer el tango negro.
– Tango negro?
– Sí, una maravillosa composición de Juan Carlos Cáceres.
Ela explicou que a peça seria o grande final de um concerto tanguero. Ele devia prestar atenção na letra, que descrevia o embranquecimento por que passara o tango, e sobretudo, acompanhar a onomatopeia dos tambores, algo inesquecível.
E lá se foram os dois, beijando-se avidamente, dispostos a fazer da noche de tango o esquenta para um amorzinho de responsa, tão inesquecível quanto a supracitada onomatopeia.
O concerto foi excelente, uma seleção de tangos clássicos pontilhada pela exibição de mestres e mestras de tango, bailarinos renomados. Afinal, soaram os acordes vibrantes do Tango negro. Juarez constatou que Consuelo tinha razão: a letra lastimava que os gringos, filhos e netos de imigrantes, tivessem alterado a maneira de dançar. Lamentava também a perda do sentido ritual do ritmo, embora alguns comparsas – grupos de candombe – continuassem a percorrer as callecitas de Buenos Aires e, sobretudo, de Montevidéu. Lá pelas tantas, Consuelo apertou forte a mão de Juarez e disse:
– Ahora entran los tambores!
Ele esperava algo semelhante à percussão do Ylê Ayê ou, no mínimo, do afoxé Filhos de Gandhi. Ou à bateria de uma escola de samba. Em vez disso escutou: “Borocotô, borocotô, chas chas, borocotô, borocotô, chas chas”.
– Bah, que diabo é isso, guria? – perguntou em gauchês, num tom meio ríspido.
– Los tambores… – respondeu ela, sem graça, consciente de que, por algum motivo, los tambores não estavam agradando.
A coisa piorou no final da peça, com uns dois minutos ininterruptos de borocotõ, borocotô, cha cha.
Terminado o concerto, foram para o apartamento de Consuelo e transaram. Foi gostoso, mas não tanto quanto das outras vezes. “Culpa do borocotô”, pensou Juarez, amargurado. O encanto era vidro, e se quebrou. Na hora, decidiu voltar ao Brasil, apesar de amar o tango e las pebetas argentinas. “Samba, milonga, candombe e tango podem ser primos-irmãos”, disse a si mesmo, “seus nomes provêm de palavras dos idiomas de Angola, mas não dá pra viver num país que reproduz o magnífico som de tambores com aquele ‘borocotô cha cha’. Deu pra mim”.
No dia seguinte, enquanto consultava as datas e horários disponíveis para um vôo Buenos Aires – Porto Alegre, cantarolava, sem dar pela coisa, Bum bum, Paticumbum, Prugurundum – uma onomatopeia consagrada para bateria, título do enredo com que a Império Serrano venceu o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro em 1982. Versão brasileira, muito mais redonda e sensual (talvez pelo bum bum inicial), do borocotô borocotô chas chas.
