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Conto inspirado no tango Garufa

Buenos Aires, 1958. Era de praxe: mal Isidoro entrava no inferninho, soavam os acordes alegres de Garufa. Ele agradecia com uma reverência e a festa começava. Pagava bebidas para os músicos e as minas, dançava – não A Marselhesa, a Marcha Garibaldi e O Trovador, como afirma zombeteira a canção –, mas tangos e milongas. E bebia mais. Às vezes saía com uma puta, às vezes terminava a noite por ali mesmo, bêbado, com um sorriso bobo no rosto.

Isidoro, 60 anos, funcionário público, era feliz assim. Não morava com a mãe, como o protagonista do tango, e sim sozinho. Vestia-se com cuidado para a noite, mas sem polainas e colarinho duro, itens obrigatórios do vestuário de um janota em 1928, quando Garufa surgiu. Não encarava noites de bacanal, simplesmente gostava da companhia de tangueros e prostitutas, seus amigos e amigas coloridas. Sabia que era aceito por seu dinheiro, eram as regras do jogo. “Mas eles e elas gostam mesmo de mim”, disse para si mesmo.

Os deuses ouviram, acharam graça e decidiram presenteá-lo com um banho de realidade.

Na noite seguinte, quando Isidoro entrou na boate de quinta categoria, percebeu, assustado, que conseguia escutar os pensamentos de todos. Foi um banho de água fria.

“Porra, chegou o babacão. Temos de tocar Garufa para o otário, sorrir pra ele, e agradecer pelo champanhe falsificado que paga pra gente.”

“E quando cai de bêbado e dorme aqui, babando? Velho sem noção”.

“Pelo menos não é mão de vaca, esse otário. A gente explora ele faz tempo.”

Com as prostitutas, foi mais doloroso.

“Porra, chegou o babacão. Tomara que beba todas e desabe. Ou que fique alisando os músicos, o otário acredita que gostam dele, pode isso?”

“É, mas depois vem pro nosso lado, e trepar com ele ninguém merece.”

“Pelo menos não é mão de vaca, esse otário. A gente explora ele faz tempo.”

Aturdido com as revelações, Isidoro saiu tropeçando e voltou para casa. Nunca mais voltaria àquela espelunca, não conseguiria fingir que estava tudo bem. E percebeu que não havia (nem haveria) outros amigos, outras mulheres. Estava condenado à solidão ampla, geral e irrestrita.

Em casa, à beira das lágrimas, em um último presente malevo das divindades da noite, canalizou, em versão isidoresca, os versos finais de A história de Lily Braun, de Chico Buarque de Holanda, canção que surgiria apenas em 1983, em plagas brasileiras:

“Nunca mais amigos/ A brindar comigo/ São todos vis/ Nunca uma espelunca/ Nem um tango, nunca/ Nunca mais feliz.”

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