Luísa Martins
Na frieza dos números, há oito famílias disponíveis para cada criança apta à adoção no País. A equação, na prática, não fecha. Nos abrigos brasileiros, meninos e meninas com idade superior a 3 anos são maioria e, ao mesmo tempo, os menos desejados pelos aspirantes a pais. Ano a ano, os pretendentes têm, timidamente, aberto o leque de preferências etárias, mas a idealização de um filho recém-nascido ainda faz permanecer o descompasso.
Um trauma que a criança mais velha pode carregar – abandono, negligência e até maus-tratos – é uma das principais razões pelas quais as famílias inscritas no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) prefiram bebês. “A criança maior já consegue relatar experiências. E mesmo que ela possa misturar fantasia e realidade, é difícil para os pais lidarem com o registro de memória”, diz a psicóloga Sanmya Salomão, coordenadora do programa de adoção tardia da ONG Aconchego, em Brasília.
As estatísticas do CNA – administrado pela Corregedoria Nacional de Justiça, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – mostram que mais de 57% dos pretendentes exigem que seus filhos tenham até 3 anos. A partir daí, o porcentual diminui à medida que a idade aumenta, a ponto de só 5% se interessarem por crianças acima de 8 anos.
Aos poucos, campanhas de conscientização e de preparação para adultos habilitados a adotar têm mudado essa realidade. Em 2015, foram efetivadas 711 adoções tardias – a partir de 3 anos, conforme classificação do Judiciário -, 79 a mais do que em 2014 e 150 a mais em relação a 2013.
“Achávamos que poderia ser preconceito, mas, na verdade, a questão é a falta de conhecimento emocional”, diz o juiz Elio Braz Mendes, titular da Vara de Infância e Juventude do Recife.
O problema não é que os adultos prefiram um filho que se encaixe perfeitamente em seus sonhos – a idealização é normal, diz Mendes. “Só que esse desejo precisa ser amadurecido e vir ao encontro da realidade. Não fabricamos crianças”, afirma.
Os abrigados em instituições de acolhimento são, na maioria, meninos pardos de 8 a 17 anos que têm irmãos. Os pretendentes não fazem tanta distinção quanto a sexo ou raça, mas requerem crianças mais novas e, em mais de 70% dos casos, não aceitam adotar irmãos.
Uma das iniciativas da Comarca do Recife foi implementar a campanha “Adote um pequeno torcedor”, apoiado pelo Sport. Crianças com mais de 7 anos que torcem para o clube ganham visibilidade em vídeos transmitidos no estádio e na internet. O objetivo, diz Mendes, é mostrar para a sociedade quem elas são. “Senão ficam na sombra, escondidas nos abrigos como se fossem prisioneiras, o que não são”, afirma. Em seis meses, cinco foram adotadas.
Perfil – No Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), 88% delas nas 3.973 instituições de acolhimento do País se enquadrariam no conceito de adoção tardia. Mais de 90% não estão aptas a entrar no CNA em função de pendências judiciais – algumas ainda não foram destituídas do poder familiar biológico, por exemplo.
“Quanto mais tempo a criança permanece em um abrigo, mais complicada pode ser a vinculação a um novo modelo parental. E os pretendentes se perguntam: vou conseguir lidar com isso?”, diz a professora da Universidade Tiradentes (Unit) Marlizete Maldonado Vargas, autora do livro Adoção Tardia: Da Família Sonhada à Família Possível.
A verdade, segundo ela, é que a adoção de crianças maiores não está mais associada a uma espécie de segunda opção, mas a um interesse genuíno em trocas profundas de afeto. “É uma relação que se constrói de uma forma espontânea e bonita.”
O adulto que queira se habilitar à adoção é obrigado a passar por preparação psicossocial e jurídica. “Muitos argumentam que a jornada seria mais fácil, portanto, com um bebê, que seria mais ‘moldável'”, diz a psicóloga Niva Campos, supervisora da Seção de Colocação em Família Substituta da Vara da Infância e Juventude de Brasília, onde 98% das famílias só aceitam crianças de até 3 anos. Isso é mito. “O bebê é uma ‘caixinha’ muito mais misteriosa.”