Notibras

Dagoberto, Lovatto e Novato, personagens de uma comédia sem autor

O aspecto lúdico da sonoridade das palavras e da sua repetição sempre me encantou, posto que é o alicerce central da poesia e, na minha opinião, também um componente muito importante da prosa.

Um exemplo delicioso que nunca saiu da minha mente é uma primorosa composição do efêmero e peculiar grupo humorístico “Baiano e os novos Caetanos”:

“Eu vou bate pá tú,
Pá tu batê pá tua patota Vô batê pá tú, batê pá tú Pá tú batê (…)
Pá amanhã a pá não me dizer Que eu não bati pá tú
Pá tú pode batê”

Dentre a fabulosa família das sonoridades – aliteração, assonância, paronomásia e onomatopeia – confesso que a minha preferida é a mais moleca de todas, a assonância. Todavia, fora do espaço da arte, essa sonoridade tão magicamente musical e sedutora também pode se transformar em armadilhas que nos colocam em situações embaraçosas na vida cotidiana.

Quem me contou uma história que ilustra sobremaneira uma bem essa situação dessa espécie foi o meu amigo Dagoberto, um sujeito cognitivamente muito capacitado e, também, um pândego na arte de contar causos verídicos que, na sua verve, se transformam em saborosas comédias.

Na época em que a engraçada situação aconteceu, Dagoberto era meu colega e diretor da Associação dos empregados da Caixa Econômica Federal do Rio Grande do Sul, cujo presidente, na ocasião, era o saudoso e valoroso companheiro Valdir.

Valdir era um líder natural respeitadíssimo por toda a categoria e sua palavra e orientação eram como um mandamento para quem militasse ao lado dele.

Certa vez, Valdir convidou o superintendente da Caixa da regional Caxias do Sul, Célio Lovatto, para um almoço na sede da Associação em Porto Alegre com o objetivo de estreitar relações e discutir questões atinentes à categoria naquela região do estado. Lovatto era um chefe institucional também muito capacitado, estimado e respeitado por todos que o conheciam.

Como forma de cortesia, Valdir pediu ao diretor Dagoberto que apanhasse Lovatto no ao hotel em que estaria hospedado e o conduzisse até a sede social onde ocorreria o almoço, reiterando expressamente a orientação de tratamento VIP ao ilustre convidado. Como ainda não conhecia Lovatto pessoalmente, Dagoberto pediu uma descrição física do mesmo, o que lhe foi relatado com a máxima precisão possível.

Chegando ao hotel quase ao meio-dia, Dagoberto vislumbrou um homem de blazer que estava parado próximo à porta do estabelecimento. Ele correspondia perfeitamente à descrição que lhe fora dada por Valdir.

Então, estacionou o veículo na frente do hotel e, dali mesmo, perguntou ao homem em voz alta:

-Tu é o Lovatto?

O homem aproximou-se do veículo e respondeu:

-Sou sim! Pois não?

Obtida a identificação positiva da autoridade, Dagoberto, muito expansivo, quis se mostrar simpático:

-Como vai o amigo? Fez boa viagem?

O homem, um tanto surpreso, respondeu:

-Fiz sim…mas já faz um bom tempo!

Querendo ampliar a camaradagem, Dagoberto replicou:

-Já está com fome? Tem um churrasco raiz a sua espera! Parecendo atônito, o homem de blazer falou:

-Agradeço… mas vou ter que trabalhar até as quinze horas hoje. Um tanto confuso, Dagoberto tentou fazer graça:

-Trabalhar? Nada disso! Hoje o homem da Serra merece uma folga com carne boa regada à cerveja!

Agora ainda mais perplexo, o homem ponderou:

-Olha, talvez esteja havendo algum engano…

-Como assim? Tu não é o Lovatto?

-Lovatto?

Repentinamente, outro homem saído do hall do hotel dirige-se a Dagoberto:

-Tu é o Dagoberto da Associação?

-Sou sim…e quem é o senhor?

-Sou Célio Lovatto, o Valdir me avisou que tu virias me buscar para o almoço!

Atarantado, Dagoberto dirigiu um olhar furioso para o homem com quem havia conversado até então.

-Mas, afinal…o senhor é quem?

-Eu sou Ariclenes, recepcionista e controlador de acesso do hotel.

-Ariclenes? Recepcionista? Mas quando eu perguntei…

-Ah, entendi que o senhor tinha perguntado se eu era novato por aqui! E como trabalho no hotel há apenas uma semana…

Constrangido até a medula, Dagoberto finalmente cumprimentou o verdadeiro Lovatto e falou apressadamente:

-Vamos embora, Lovatto, o Valdir está nos esperando!

-Quase me levaram por engano hein…sibilou sardonicamente, Ariclenes.

-Como? quis saber Lovatto.

Quase fuzilando novamente o recepcionista com os olhos, Dagoberto conduziu Lovatto para o carro e finalizou a conversa:

-Não dá bola para esse sujeito, Lovatto. Ele não bate bem da cabeça!

Sair da versão mobile