A multipremiada jornalista e escritora canadense Naomi Klein em sua obra mais conhecida, o “best seller” Doutrina do Choque, propõe uma lúcida e cruelmente real tese de que o neoliberalismo fomenta as condições de destruição para ganhar dinheiro substituindo o estado na reconstrução do que fora destruído, reconstrução esta direcionada para empresas privadas. A autora aponta que o pavor social derivado do choque causado pela destruição amortece a capacidade da sociedade de resistir ao avanço deste tipo de capitalismo, facilitando assim sobremaneira aos grandes conglomerados privados se apossarem das riquezas construídas por toda a sociedade, e ainda se valendo de recursos públicos orçamentais para realizarem seu serviço, obviamente pagos pelos contribuintes.
Dentre inúmeros caso em que a autora aponta este modus operandi, o que ocorreu no Iraque simboliza o mais notório deles. Ali os EUA construíram falsamente as condições (armas de destruição em massa), invadiram o país e o destruíram, e depois delegaram à megacorporações, principalmente norte-americanas, a reconstrução a custa do dinheiro do contribuinte norte-americano e das riquezas petrolíferas do Iraque. Um verdadeiro butim pago pela sociedade e que destinou muita riqueza para os pouquíssimos felizardos que abocanharam os contratos para a “reconstrução”, afora o custo humano de milhares de vítimas da empreitada. Klein chama a isto de capitalismo do desastre.
Algo parecido parece ocorrer em Gaza. É imensamente conhecido que Trump é um controverso empresário que, mesmo tendo quebrado algumas empresas e deixado inúmeros investidores na pior, se tornou bilionário e sabe como ninguém ganhar dinheiro. O aumento da fortuna dele desde a posse como presidente evidencia bem isto. E para quem não sabe, ou não se lembra, Netanyahu foi o ministro da economia do governo israelense que tocou um processo de privatização e redução de gastos sociais em Israel na primeira década dos anos 2000, antes de se tornar primeiro-ministro. Ambos rezam pela cartilha ultra liberal.
Observando isto, não custa imaginar o que pode estar por trás desta súbita mudança de rota de Trump e Netanyahu quanto ao que ocorre em Gaza, região em que aproximadamente 84% dos imóveis foram destruídos, segundo a ONU. Netanyahu sempre resistiu a qualquer iniciativa de cessar fogo, e de repente aceita condições que nunca constaram de seu discurso, como aceitar um governo de palestinos em Gaza, e não colocar como condição para o fim dos ataques a eliminação do Hamas.
Concomitante a isso, Trump já anunciou que há muito dinheiro disponível para a reconstrução. Considerando que no capitalismo não existe altruísmo e as empresas se movem pela busca de lucro, é possível inferir que os contribuintes de algumas nações vão financiar grupos privados para reconstruir o que Israel destruiu, claro a partir de aportes financeiros de governos pretensamente interessados no bem-estar dos palestinos. E não nos espantemos se algumas iniciativas como privatização da água e da energia e até mesmo das praias locais ocorram neste processo.
E por quê o ceticismo quanto a uma efetiva paz na região? Bem, esta não é a primeira vez que os dois lados assinam acordos que trariam a suposta paz definitiva. O mais notório foram os tratados de Camp David, onde as autoridades palestina e israelense, sob a sombra do presidente dos EUA da época, assinaram um acordo “definitivo” em 1993. Até ganharam o prêmio Nobel da Paz por isso, embora ganhar o prêmio Nobel da Paz não seja mais sinônimo de luta pela paz, haja vista a vencedora de 2025. Passados poucos anos, a carnificina voltou, não por acaso ao mesmo tempo que Israel percebeu que a indústria da guerra dá muito mais retorno do que uma indústria da paz. Assim, expandiu além de ocupações ilegais, o complexo industrial de defesa, fazendo desta mercadoria sua principal pauta de exportações, isso tudo sob a batuta de Netanyahu no ministério da economia da época.
São fatos históricos que evidenciam que não será nenhuma novidade se daqui a pouco tempo, após algumas corporações terem lucrado muito com a “reconstrução de Gaza”, o horror voltar com futuras destruições, e consequentemente novas e lucrativas reconstruções a custa do dinheiro dos contribuintes dos países “amigos”.
Espero estar errado.
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Antonio Eustáquio é Correspondente de Notibras na Europa
