Sabem aquela cena famosa do filme O sexto sentido, em que um garoto de oito anos diz, com voz entre soturna e lastimosa, I see dead people (Vejo gente morta)? Davi a achava um tédio. Ele também via dead people, fantasmas, e nem por isso usava aquele tom de voz, digamos, fantasmagórico para confessar a coisa.
Aliás, ele havia falado sobre sua percepção sobrenatural a pouquíssimas pessoas. Até porque, devotado militante socialista, ele se dizia materialista e ateu. Era preciso uma gingada, uma quebrada de corpo bem brasileira para conciliar seu ateísmo e a constatação de que existia vida após a morte. Pelo menos para os “seus” fantasmas. Pois Davi não tinha a menor certeza de que todas as almas sobreviviam no além-túmulo.
E nem estava interessado em descobrir. Ele tinha outras preocupações, como barrar o avanço da extrema direita. Afinal, era um revolucionário!
Parecia que o destino de Davi era enfrentar direitistas cascudões. Ele fizera isso no Brasil, na universidade, participando de todos os atos contra o Bozo, e dera uivos de alegria com a derrota nas urnas do Coisa Ruim. Em dezembro de 2023 chegara a Paris, com uma bolsa de pós-graduação em Ciência Política; e vira a extrema direita francesa – bem mais civilizada que a tigrada mitista, diga-se – avançar como um rolo compressor rumo ao poder. Mas viu também a esquerda local se unir e em seguida se aliar à centro-direita. Resultado, mais uma vez a extrema direita da França mordeu o pó. E a esquerda unida, não a centro-direita, foi a grande vencedora nas eleições. Uma dupla vitória.
Davi estava entre as milhões de pessoas que correram às ruas para festejar o triunfo da Nova Frente Popular, cujo nome faz referência a uma aliança que barrou o caminho ao fascismo em 1936. Bebeu vários copos de cerveja, abraçou desconhecidos, beijou lindas desconhecidas, entoou a Marselhesa e canções revolucionárias a plenos pulmões. E, com sua capacidade de ver gente morta, foi um dos poucos a vê-los chegar.
Os primeiros a se reunir aos viventes mostravam no peito os ferimentos causados pelos projéteis que os haviam fuzilado. Mas naquela noite estavam vivos e, emocionados, murmuravam frases em que se percebiam as palavras La Commune. Davi percebeu que eram communards, revolucionários que haviam implantado o primeiro Estado operário da história, a Comuna de Paris, sufocada pelas forças da ordem.
Uma segunda leva de fantasmas recém-materializados tinha as mãos enegrecidas pelo pó de carvão. Eram mineiros do norte da França, que haviam enfrentado os poderes constituídos em greves brutalmente reprimidas. No romance Germinal, o escritor Émile Zola havia descrito uma dessas greves, bem como as terríveis condições de vida a que estavam submetidos os mineiros do carvão; a leitura desse livro ajudou Davi a identificá-los.
Havia outros grupos fantasmagóricos: homens com trajes simples de operários dos anos 1930, muito provavelmente militantes da Frente Popular de 1936 e das greves maciças que naquele ano abalaram a França, levando-a à beira da revolução; jovens armados, com dizeres em espanhol em suas roupas, sem dúvida voluntários nos batalhões franceses das Brigadas Internacionais, na Guerra Civil Espanhola; figuras esqueléticas, com uma estrela de Davi bem visível nas vestes – judeus franceses enviados aos campos de extermínio nazistas. Todos eles tinham um ar de paciente expectativa.
E então o que aquele mar de gente esperava aconteceu: soaram os primeiros acordes da Internacional. A canção dos oprimidos, composta em 1871 por um communard após a derrota da Comuna, que recebeu letra em 1888, foi entoada em dezenas de idiomas. Davi cantou o hino anarquista, socialista e comunista em francês, juntamente com a esmagadora maioria dos presentes – vivos ou mortos.
Depois de ser cantado pela última vez o refrão, C’est la lutte finale/Groupons nous, et demain/ L’internationale/ Sera le genre humain [É a luta final, unamo-nos, e amanhã a Internacional será o gênero humano], os fantasmas começaram a partir. Davi se despediu deles em silêncio, acompanhando com os olhos cheios de lágrimas cada grupo que se desvanecia.
