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Devaneios em Paris

Roberto, paulistano, 58 anos, ia sempre a Paris. Em sonhos.

Claro que a capital francesa que visitava era onírica, colcha de retalhos da Paris que conhecera em diferentes épocas ou via pela TV e outros meios de comunicação. Nas ruas, rapazes de jeans e moçoilas sempre cobertas de ponchos ao estilo andino – uniforme das militantes gauchistas – distribuíam Rouge, o jornalzinho do grupo trotskista Liga Comunista Revolucionária (LCR). Era uma das marcas registradas dos anos 1973 – 1977, em que havia morado na França. À exceção das jovens militantes, porém, as parisienses usavam meias-calças e decotes sóbrios mas atraentes, dando mostras de uma elegância que o havia encantado em 1987, quando de sua segunda permanência no país. E havia grandes manifestações populares, lideradas pelo partido/movimento de esquerda La France Insoumise (A França Insubmissa), sucessora da LCR na hegemonia da extrema-esquerda. Em termos políticos e na realidade, os dois grupamentos não podiam ser contemporâneos – mas, nos sonhos de Roberto, podiam sim, e o eram.

E havia os pintores, que ele conhecera em Montmartre e em outros redutos boêmios. Conforme os personagens, sabia que estava no Segundo Império ou na Belle Époque, mais para o final do século XIX, já na III República (proclamada em 1870, após a derrota francesa na guerra franco-prussiana). Era um absurdo temporal participar de uma “manif” contra a extrema-direita, à tarde, e, horas depois, dirigir-se ao Moulin Rouge, para beber absinto e se chapar de ópio na companhia do pintor Henri de Toulouse-Lautrec. Nos sonhos de Roberto, porém, isso acontecia sempre.

Libertinos, meio loucos e absolutamente geniais, os pintores das duas gerações, separadas por mais de 20 anos, acolheram-no sem problemas (as generosas rodadas de absinto, que Roberto pagava com dinheiro de sonho, provavelmente ajudavam). Chamavam-no “le brésilien”, o brasileiro. E foi quando estava com os artistas do Segundo Império, um pouco mais comedidos que os loucos da Belle Époque, que Édouard Manet, um dos impulsionadores do impressionismo na pintura, lhe dirigiu as seguintes palavras:

– Eh, le brésilien! Je vais t’immortalizer! [ei, brasileiro, vou te imortalizar].

Roberto sorriu e não respondeu.

Certo dia, em vigília, em São Paulo, ele se entregou a um dos seus passatempos favoritos: examinar as telas dos artistas que havia conhecido/conhecia, responsáveis pela extraordinária explosão de criatividade nas artes plásticas do século XIX. Já havia mergulhado em algumas produções do impressionista Claude Monet e do pós-impressionista Toulose-Lautrec, cronista visual de cabarés e prostitutas, quando se deparou com uma tela de Édouard Manet. Intitulava-se Música nas Tulherias e fora pintada em 1862, sendo considerada uma das obras-primas da fase inicial do impressionismo.

E então ele viu a si mesmo. Estava em meio à multidão, em segundo plano, de chapéu comum – ou seja, sem cartola, acessório indispensável aos elegantes do Segundo Império – mas o artista havia registrado com precisão sua face, de perfil, e sua barba. Recordou as palavras de Manet, de que o imortalizaria, e murmurou, “Ele cumpriu a promessa”.

Sem dúvida, havia a possibilidade de não ser ele, e sim alguém muito parecido. Para Roberto, porém, foi o suficiente para confirmar que seus sonhos parisienses eram bem mais que sonhos.

Recordou a seguir uma passagem do início de No caminho de Swann, livro 1 do monumental romance Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust: “Um homem que dorme sustenta em círculo, a seu redor, o fio das horas, a ordenação dos anos e dos mundos”. Era isso, ele se tornara um exímio manipulador dos fios das horas, um ordenador dos anos, capaz de mesclar grupelhos gauchistas pós-1968 a pintores da Belle Époque, lindas parisienses dos anos 1980 a impulsionadores do impressionismo e a manifestações antifascistas da década de 2020. E, como evidenciava o quadro de Manet, nesses deslocamentos temporais e espaciais, via e era visto, participava disso tudo com todas as forças, de corpo e alma.

Roberto deu um sorriso e pensou: “Só espero que o absinto, a deliciosa e mortal ‘fada verde’, não me leve pro túmulo antes da hora. E se morrer em Paris, bato as botas aqui também? Parei de beber há 10 anos em São Paulo; já em Paris, encaro ópio, haxixe, absinto, champanhe, qualquer prazer me diverte. É, preciso ordenar melhor meus mundos”.

Após essa reflexão, preparou-se para dormir e, quem sabe, partir de mala e cuia para a Cidade-Luz, mergulhando em mais um sonho parisiense.

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