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Dezembro nem chegou, mas já tem fã indo de volta para o futuro esperando o show

Quem escreve – como eu, agora mais cronista que repórter – deve estar preparado para enfrentar desafios sobre diferentes temas. A última provocação veio da neta mais velha. Algo sobre Matuê e seu show programado para Brasília no final do ano. Com um passado musical onde Nelson Gonçalves era sucesso bem antes da jovem guarda – hoje também já grisalha – abracei o pedido e viajei no tempo.

Era fim de tarde de um dezembro vindouro quando o asfalto do Eixo Monumental começou a arder feito brasa. Brasília parecia vibrar em outra frequência, como se as antenas do Planalto tivessem sintonizado uma rádio celestial.

Os jovens vinham em ondas carregando suas mochilas, cabelos coloridos, olhos brilhando de expectativa. Logo adiante a Arena BRB Mané Garrincha se erguia como um templo moderno, e Matuê seria o sumo sacerdote do último ritual da turnê 333. A cena aconteceu pouco antes do Natal, como se um salto ao futuro vislumbrasse um quadro surreal. E todos foram presentados como algo inimaginável

— Miga, cê tem noção? — disse Júlia, abanando-se com o ingresso. — Último show da tour. É tipo… o fim de uma era.

— Fim? — retrucou Yaya, a amiga inseparável, que usava uma bandana amarela e os olhos marejados de tanto sol. — É o começo. Matuê vai lançar o 444 depois disso, anota aí.

Elas riram, fãs cúmplices daquele que era seu mito. Ao redor, o chão se fazia um mosaico de gente. Grupos cantando refrões, outros deitados na grama, alguns tentando captar sinal pra postar stories com a hashtag #333Finale. O ar cheirava a energético, perfume doce e expectativa.

Um vendedor ambulante passava:

— Água gelada, R$ 5! Gelo direto do Lago Paranoá!, dizia, mentindo sem culpa.

E lá estavam todos — meninos e meninas que nunca foram tão jovens quanto agora, delirando antes mesmo do primeiro acorde.

Quando as luzes da arena começaram a pulsar em roxo e dourado, um silêncio reverente tomou conta. Por um segundo, até o vento parou. Então, a batida desceu: “Quer Voar”. O público gritou em uníssono, como se o som rasgasse o céu.

— Caraca, ele abriu com essa!, gritou Júlia, já chorando.

— Isso não é show, é batismo!, disse Yasmin, sorrindo, sem desviar os olhos do palco.

As luzes se fundiam às vozes, o público virava coro, o som explodia como trovão urbano. Havia ali algo de religioso, com uma geração inteira encontrando sentido em beats e versos.

No meio da multidão, uma menina desconhecida abraçou Júlia.

— A gente esperou tanto por isso, né?

— Esperou, sim — respondeu Júlia, sem se perguntar o nome. — Agora é real.

E era. O som, o calor, o suor, a lágrima… tudo se misturava em uma só vibração de 333 Hz. O delírio não era descontrole. Era comunhão.

Quando o show terminou, Brasília parecia mais viva do que nunca. E por uns minutos, antes que a realidade voltasse, cada um acreditou que podia realmente voar. Como se batessem as asas de volta a outubro.

Apesar do início das chuvas, ainda esparsas na capital da República, o sol começava a cair sobre o Eixo Monumental como um disco derretido. É que havia rumores da venda antecipada de ingressos. O céu de Brasília tinha aquela cor impossível entre o ouro e o lilás, e a cidade inteira parecia vibrar num compasso diferente. Era o dia 20 de outubro e nas bilheterias do Mané Garrincha se formavam grandes filas, desenhando um imenso coração elétrico prestes a pulsar pela última vez na turnê 333.

Chegavam em bandos, a pé, de metrô, de carona — gente dos lagos Sul e Norte, do Guará, do Sudoeste, de Águas Claras, do Gama, de Planaltina, de Ceilândia, do Entorno. Rostos jovens, sorrisos ansiosos, olhos que refletiam a promessa de uma noite inesquecível.

— Avisa lá, mãe, que hoje eu volto voando — dizia Rafinha, 17 anos, de boné virado e camiseta preta com o rosto de Matuê estampado em neon.

— Voando e sem grana pra passagem — respondeu Bia, amiga dele, rindo. — Mas vale, né? Último show, cê é doido. Vamos acampar até dezembro chegar.

Perto deles, um senhor observava tudo com um misto de curiosidade e ternura. Era Anselmo, segurança da arena desde a Copa de 2014.

— Nunca vi essa juventude assim, tão… acesa — comentou com um colega. “Antigamente o povo se juntava pra ver futebol, hoje é pra ver um tal de trap”.

O amigo respondeu, ajustando o colete:

— É a nova religião, Anselmo. O beat é o hino, e o Matuê é o padre. Mas precisamos aviusar que não há bilhetes. O show está longe ainda.

Desenhou-se antecipadamente uma suposta cena épica dentro do gramado. O público se mexia como um só corpo, ondulando entre gritos, gargalhadas e refrões soltos.

Lara, sentada no chão, olhava para o céu, com um imaginário ingresso na mão.

— Vim de ônibus de Unaí — contou a um rapaz desconhecido ao lado. — Muitas horas de viagem.

— Sozinha?

— Sozinha, não. Trouxe minha fé.

Ele sorriu. Não era paquera. Era reconhecimento, como se todos ali compartilhassem o mesmo código invisível.

Sinto que há um trovão digital no ar, prestes a ecoar o verso “Quer voar, quer voar…”

Júlia e Yasmin, no meio da massa, se olhavam como se o mundo tivesse finalmente feito sentido.

— Isso aqui é eterno — disse Júlia, a voz embargada.

— Eternidade em três minutos e trinta e três segundos, respondeu Yasmin.

De volta para o presente, aguardando o futuro. Dezembro vem aí. Se as expectativas dos fãs vingarem, até o concreto estará dançando. Nesse dia, o céu do Planalto engolirá as estrelas. E por um instante, Brasília será apenas vibração. Um delírio coletivo, um refrão sem fim, 333 batendo no peito de uma geração inteira.

…………….

José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras, de passagem por Brasília.

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