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Dois Meninos, Dois Destinos

Encravada num belo vale, pontuado aqui e ali de ipês em flor, ao fim de uma alameda cercada de palmeiras imperiais, estendendo-se, sobre um platô, por muitos metros, com mais de 30 janelas na fachada, estava a casa grande da Fazenda Morro Verde, que pertencia a um dos mais proeminentes produtores rurais do então Império do Brasil.

A fazenda era um organismo vivo e quase autossuficiente. Tudo de que necessitavam seus moradores, em matéria de alimentação, era ali produzido, exceto alguns itens obtidos em compras na vila próxima.

À tardinha, imenso grupo de trabalhadores escravizados, vigiados por alguns capatazes, voltava do eito trazendo suas ferramentas. Entoavam um cântico lamentoso enquanto andavam, pisando pesadamente o chão de terra.

A chaminé do fogão, na parte de trás da casa, soltava tênue fumaça, que se desfazia a poucos metros de altura em direção ao céu alaranjado. As sombras cresciam e se preparavam para engolir o cenário.

Dentro da casa, naquele tempo, desenrolava-se o drama do poderoso proprietário e sua mulher.

Após anos de casamento sem fruto, nascera o filho do Coronel Francisco Antunes. Foi batizado de Eurico, o mesmo nome de seu avô paterno. A mãe, Dona Zenóbia de França Antunes, no entanto, foi desafortunada, e morreu de infecção poucas semanas depois do parto do menino. Aconteceu como se um raio houvesse caído naquela casa grande da fazenda, do interior do Rio de Janeiro, no ano da graça de 1858.

Os esforços dos facultativos, vindos da Corte, que custaram alguns contos de réis, foram inúteis. A mulher não resistiu. Os últimos dias foram de inconsciência. Nos delírios, ela dizia, intensamente:

– Os meninos… os meninos… Cuidem dos meninos. Por graça de Deus, cuidem dos meninos.

Suava e mantinha os olhos cerrados.

As poucas pessoas que assistiam seus estertores olhavam-se estranhadas, pois quem haveriam de ser “os meninos”? O parto havia sido de apenas um varão.

Por sorte do recém-nascido, quase ao mesmo tempo engravidara a escrava Sabina, também primípara, da grande senzala do Coronel, mucama da sinhá, por quem o senhor tivera sempre muito afeto. Afeto tão grande que deu fruto: Erasmo, meses apenas mais velho que Eurico. Sabina foi feita ama de leite do filho do Coronel.

Erasmo e Eurico cresceram juntos, quase como gêmeos desencontrados, um no quarto de sinhá, outro à sombra do fogão a lenha. Mas eram iguais em brincadeiras, folguedos, cavalgadas, traquinagens. O terreiro vermelho era campo de guerra e de paz: corridas, quedas, joelhos esfolados, mergulhos no córrego raso que cantava na beira da várzea. Euriquinho, de botinas que vinham da Corte nas malas do caixeiro, media a altura das mangueiras; Erasmo, descalço, subia mais alto. Em dias de festa, o Coronel mandava vesti-los igual – a mesma jaqueta de brim, à alferes, as calças de algodão, cinta encarnada. Iguais no tecido, diferentes nos pés: Euriquinho usava sapatos e Erasmo, não.

As senhoras, de visita, sorriam amarelo. Um ou outro vizinho, mais atrevido, murmurava a ousadia de pôr escravo ao lado do herdeiro, sendo criado assim tão juntos.

Erasmo era a sombra de seu meio-irmão, não raro comiam do mesmo prato, e a proximidade causava falatório também entre as outras escravas da casa, que, maldosas, recebiam reprimenda de Matilde, a mais velha de todas, já meio cega, agora encarregada de tingir tecidos e fazer sabão de cinza num grande tacho de cobre, no pátio de dentro, perto da cozinha.

– Não vão metendo o bedelho nisso não, sô. Fica de fofocaiada. O sinhô é bão, quer a Erasmo como se fosse filho dele.

– “Como se fosse”, Matilde? – provocava uma delas, Evangelina, a mais jovem.

– Psiiiiu – fazia a velha negra, com o indicador sobre o lábio, a demandar silêncio. Certas verdades eram proibidas naqueles rincões. Sabina chegara perto do grupo, e Matilde a queria muito bem para que tais conversas a magoassem.

Sabina ajeitava o colarinho do filho do senhor com a mesma mão que alisava o crespo de Erasmo. E, num descuido doce, Euriquinho chamou-a “mãe preta”.

Eurico aprendia no salão azul da casa grande as lições ensinadas pela preceptora Frau Anne, uma alemã curta de sorriso e larga de rigores, que viera da Corte e passava temporadas na fazenda, de cabelos louros, face vermelha e olhos muito azuis. Sua face dura quase nunca esboçava um sorriso. Exceto para Erasmo, que lhe caíra nas graças e, não raro, ficava sentado ao pé da mesa onde as lições, que pareciam um pelotão de letras, ocorriam. Em princípio, Frau Anne, secretamente, dava lições também ao menino escravo, dentro do qual as sílabas escorriam como água de mina. Às vezes respondia primeiro ao que a mestra perguntava ao branco. E ele já sabia ler perfeitamente, enquanto o filho do senhor se desenvolvera na leitura e na escrita, mas certos saberes lhe pareciam pedras descendo pela garganta. O ar do menino-senhor pesava, e um surdo ciúme, sem nome ainda, punha raiz no coração de Eurico.

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O Capítulo II deste folhetim será publicado na terça-feira, 23.

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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