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Drama percorre regime militar em história de Milton Hatoum

Foto/Divulgação

Ubiratan Brasil

O escritor Milton Hatoum estava com seu novo livro bem encaminhado quando seu editor, Luiz Schwarcz, fez uma observação que mudou completamente o rumo da trama. “A história tem uma franco-brasileira como narradora e, em um determinado momento em que ela conversa com outro personagem, Martim, Luiz escreveu na margem da página: ‘Seria interessante saber mais sobre esse Martim’. Concordei e isso levou mais cinco anos”, conta Hatoum, entre sorrisos. A trama, portanto, ganhou um desdobramento e se transformou em uma trilogia, O Lugar Mais Sombrio, e cujo primeiro volume, A Noite da Espera, chega agora ao público, sob a chancela da Companhia das Letras.

Trata-se de um momento definidor na carreira do escritor, colunista do Caderno 2 – afinal, depois de construir uma obra formada por romances cujo enredo era centralizado em Manaus, sua cidade natal, Hatoum segue a própria trilha de vida e chega ao Planalto Central. É que, ao desvendar a história de Martim, o escritor novamente se volta a um drama familiar, mas entrelaçado à história da ditadura militar em Brasília, nos anos 1960. “Era o livro que eu queria escrever, mas vinha adiando. Eu tratava de tantos assuntos, mas adiava essa viagem. A observação do Luiz antecipou o que eu já pretendia fazer.”

E o resultado são os dois primeiros volumes da trilogia – o segundo, Hatoum pretende, deve sair no próximo ano. E a história da franco-brasileira figurará no terceiro livro. Tudo resultará em uma longa narrativa, aquela que os alemães classificam como Bildungsroman. “É, de fato, um romance de formação”, considera ele. “E com um forte fator externo, que foi a presença militar durante a ditadura, e o fator interno, que move o romance: o drama de Martim, baseado na ruptura com a mãe e a difícil relação do pai. Esse relacionamento é um dos lugares mais sombrios do livro.”

A Noite de Espera acompanha Martim, jovem paulista que se muda para Brasília junto com o pai, nos anos 1960, depois de uma traumática separação da mãe. Na nova Capital Federal, faz amizade na universidade, a UnB, com adolescentes de variadas classes sociais, desde um filho de embaixador até outro, morador de um casebre em uma Cidade Piloto, e cuja mãe trabalha como empregada doméstica.

“Como eu não queria falar de mim, o desafio foi trabalhar com a imaginação para construir esses personagens”, explica Hatoum. “É decisiva a presença da experiência – não apenas a individual, mas a de grupo, adquirida pela fabulação dos outros. A memória como vasos comunicantes, que passam de um para outro. Isso é um trabalho da imaginação.”

Para tecer o romance, o escritor voltou, pela primeira vez, a Brasília, onde viveu durante pouco mais de dois anos. “Demorei quase 30 anos para voltar – eu não queria mais ver aquilo. A cidade era fascinante e sombria. Ao mesmo tempo que significou a libertação da província (vim de Manaus), morar em Brasília também foi uma espécie de aprisionamento.”

O retorno, porém, foi proveitoso. “Fiquei encantado com a cidade, que une solidão, poeira e também violência. Revisitei amigos, cachoeiras. Foi uma volta no tempo e no espaço. Nesse momento, eu me senti pronto para esboçar a longa trajetória desse grupo de amigos.”

Era a época do AI-5, o que favoreceu a adesão do escritor ao movimento político-estudantil, pois estudava em um colégio excepcional, no qual se uniu aos desgarrados do movimento, aqueles mais independentes que eram vistos com preconceito internamente. “A vida era intensa e tensa”, observa o autor, que ainda traz marcas profundas na alma. “Não me esqueço da minha primeira detenção. Mesmo que não tenha havido agressão física, não me esqueço dos gritos que ouvi naquela noite.”

É importante observar que o romance não traz apenas um relato dessa memória, mas comprova a importância do distanciamento temporal para se escrever ficção. “O esquecimento como forma de memória”, segundo Jorge Luis Borges, frase que Hatoum gosta de citar. Segundo ele, o tempo que passa transcende a fidelidade das circunstâncias da vida. Cria novas perspectivas e a imaginação torna-se mais livre para trabalhar com o passado.

Assim, ao ser obrigado a voltar para São Paulo, no momento em que a repressão militar atinge limites insuportáveis, Martim retorna com uma maturidade que antes não ostentava. “Um sentimento da desilusão. Por isso, vejo como um romance da desilusão. Um grande pesadelo com pequenas interrupções.”

Escrever é uma arte árdua, que exige concentração e trabalho. “Esse texto me exigiu muito, foi bem difícil, pois passei um tempo fazendo tentativas, rondando um esboço. Eu não conseguia chegar a uma estrutura narrativa. Só começo a escrever depois de conhecer as vozes narrativas. Pensei em um diário, mas seria difícil, pois o tempo seria longo. Daí pensei em anotações, cartas, algo próximo a confissões e a um romance epistolar. A opção formal foi essa: através de uma estrutura fragmentada, unir esse quebra-cabeça. Também me preocupei com os conceitos ideológicos, evitando um discurso didático. Apesar da crítica ao sistema, há o lado autoritário dos grupos de esquerda, na qual há ameaças, dogmas. O que existe até hoje e vai existir sempre”, comenta ele. E acrescenta: “Quando a ideologia se torna um dogma, ela tolhe a liberdade. A educação tem de ser humanista, preparar a pessoa com um espírito crítico e emancipador”.

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