Hoje acordei com o barulho de passos no corredor. Não eram passos comuns. Tinham o peso de quem carrega autoridade demais e alma de menos. Os senhores do quarto andar chamam isso de “visita”. Engraçado como, desde que a tal grande regra do silêncio foi decretada aquela que não pode ser mencionada, mas que todos sentimos no pescoço, as visitas se tornaram mais frequentes. E mais longas. E mais… profundas.
Dizem que algumas pessoas convidadas para essas visitas voltam diferentes. Outras não voltam. E, quando voltam, evitam explicar onde estiveram. Talvez tenham encontrado algum lugar sem portas, só paredes que fazem perguntas. Mas isso, claro, é só especulação literária. Imaginação fértil da minha parte.
Semana passada, soube que o rapaz da esquina, aquele que tocava violão e falava alto, resolveu viajar. Estranho, porque ele nunca foi homem de malas. Nem de sumir sem deixar bilhete. A família diz que é temporário. Os vizinhos dizem que é definitivo. Os senhores fardados dizem que não sabem de nada. E, quando eles dizem que não sabem, é melhor não perguntar de novo. Perguntas demais fazem barulho, e barulho é proibido desde o grande decreto do silêncio, que caiu sobre nós como um apagão súbito: um dia havia luz, no outro, só escuro. E quem acende vela demais corre o risco de ter os dedos queimados.
Tenho evitado escrever. Não por falta de palavras, mas porque descobri que as palavras agora têm medo de dizer. Medo de serem torturadas até confessarem sentidos que nunca tiveram. Medo de desaparecerem entre uma revisão e outra, transformadas em reticências obrigatórias. Outro dia, até meu diário voltou para mim com uma página arrancada. Parece que até os cadernos estão aprendendo a obedecer ordens.
Ouvi alguém dizer que há um lugar no centro onde o chão sabe mais histórias do que as paredes. Histórias que ninguém ousa repetir. Histórias de gente que desceu as escadas e deixou o som, mas não o corpo. Mas não podemos afirmar nada. Afinal, diz a autoridade, aqui não há dor, não há pranto, não há sumiço, só equívocos, fantasias e boatos mal-intencionados. Eles dizem isso com uma convicção tão absoluta que às vezes a gente até tenta acreditar. Tenta… mas não consegue.
Curioso como, de repente, amar o país virou uma obrigação. E é um amor estranho, desses que mandam calar, que cobram devoção e que nos punem quando não sorrimos na foto. Amor com manual de instruções, com hora marcada, com soldados vigiando. Mas dizem que é para nossa proteção. Sempre para nossa proteção.
Continuo acendendo minha vela todas as noites, mesmo proibida. Não para iluminar a luz atrai olhares que não quero. Acendo para lembrar que ainda há fogo. Que ainda há calor em algum lugar. Que sombras só existem porque existe algo por trás.
E porque, apesar de toda a escuridão decretada, ninguém consegue censurar a esperança quando ela resolve sussurrar.
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PS. O texto nasceu ontem, durante o clube de leitura de que participei, cujo tema era: autores que usaram a literatura para resistir à ditadura. A proposta era comentar suas obras e, depois, escrever algo inspirado por elas. Foi aí que me peguei pensando: e se eu mesma tivesse vivido durante a ditadura militar?
