“Mundo do sono em que […] grandes figuras solenes nos aparecem, nos abordam e nos abandonam, deixando-nos em lágrimas.” Marcel Proust, Sodoma e Gomorra, volume 4 de Em busca do tempo perdido.
…..
Otávio sonhou com Edvaldo, um amigo falecido há 25 anos. Ed, como o chamava, estava em uma esquina, com um livro na mão, talvez uma Bíblia, e parecia pregar aos passantes (sim, havia passantes, mas não são importantes no sonho ou neste conto).
Ed, um pregador? Otávio não acreditou no que via. O amigo era ateu de carteirinha e pecador empedernido, mulherengo pra ninguém botar defeito.
“É, a morte transforma os viventes”, pensou Otávio, que era escritor e adorava brincar com palavras. Depois lembrou que o amigo falecido era de família evangélica. “Vai ver que, depois de bater as botas, ele foi docemente constrangido a retomar a crença de seus pais”, pensou o sonhador. “Mas daí a pregar em uma esquina há uma enorme distância”.
O segundo aspecto que lhe chamou a atenção foi a própria figura de Edvaldo. Ele parecia esmaecido, sem cor – não como um fantasma; mais próximo da representação popular dos vampiros. Otávio, homem culto, relacionou aquela figura apagada às sombras que, segundo os mitos da Grécia antiga, vagavam pelo submundo, domínio do deus Hades.
Uma referência mais precisa lhe veio à mente: as palavras de Proust, em Sodoma e Gomorra, ao buscar, num sonho, a figura da avó morta: “Procurei em vão a de minha avó, logo que passei os pórticos sombrios; sabia no entanto que ela ainda existia, mas com uma vida diminuída, tão pálida como a da recordação”. Era exatamente essa vida diminuída que parecia corresponder à figura pálida de Edvaldo.
A sombra de Ed o chamou com um gesto. Otávio se aproximou, relutante.
– Fala, amigo. Há quanto tempo!
Mal proferiu essas palavras, Otávio teve vontade de morder a língua.
Dirigir frases feitas a um morto, falar da passagem do tempo… que estupidez! Tanto quanto sabia, não existe tempo na eternidade. Mas pelo menos não falou, “Oi amigo. Tudo bem?” Aí, merecia ser no mínimo apedrejado.
A sombra permaneceu silenciosa. Finalmente, falou:
– Otávio, ainda há tempo de mudar de vida, sua hora está chegando.
O vivente explodiu. Pelo menos não falou, mas pensou:
“Porra, vira essa boca pra lá! Sei que ninguém fica pra semente, mas tô bem, me cuido, parei de beber faz tempinho”.
Quase acrescentou, “uns dois anos depois de você esticar as canelas”, mas se conteve.
A sombra de Ed permaneceu em silêncio, limitando-se a encará-lo com olhos tristes. Aquilo foi enervando Otávio; o pior é que não sabia como terminar a conversa, que se desfizera no ar.
Reconheceu, meio a contragosto, que a aparição guardava uma certa solenidade, mas tratou de afastar essa ideia. “Solene e digno… imagina! Você foi o mais sacana de todos nós, quem não te conhece que te compre!”
Afinal, o morto o tocou no ombro, em um gesto de infinito carinho, e desapareceu.
Otávio acordou pouco depois. Não se lembrava do sonho mas, por algum motivo, tinha os olhos cheios de lágrimas.
