Notibras

Eis um conto do livro “Camafeus”, do escritor Cassiano Silveira

Sentando-se à mesa, o Senhor pediu um pedaço de bolo.

—Acabô, Sinhô.

—Que!? Mas já! Fizeste esse bolo hoje pela manhã… Quem comeu?

Jesuína apenas calou, virando-se outra vez para as panelas que ferviam no fogão a lenha, preparando o jantar. Quem falou foi Odetta, a governanta:

—Foi certamente a sinhazinha, Senhor. Hoje quando fomos fazer a oração da tarde, senti seu hálito de bolo de fubá. Continua gulosa, a sinhazinha Amada, por mais que eu lhe diga que é pecado. O padre sempre lhe passa penitência, mas o pecado nessa menina é recorrente. E essa escrava aí, acoberta.

Jesuína sentiu em suas faces um calor muito maior que aquele que vinha das achas ardentes. Não saberia dizer se sua reação era mais por medo do castigo que estavam em risco de receber (ela e a sinhazinha), se era a vergonha de reconhecer-se cúmplice dos deslizes da menina ou ainda se era a raiva silenciosa que sentia de Odetta, que estava sempre criando suas intrigas. Minto, saberia sim: sua vontade era derreter a cara de Odetta na chapa quente do fogão!

O Senhor olhou grave para a cozinheira, que continuava de costas e não se encorajava a falar.

—Tenho sido muito ausente da educação da Maria Amada, mas sei como emendá-la. Amanhã bem cedo vou encaminhar a solução para acabar com a gula dessa menina. Quanto a você, Jesuína, fique atenta que o relho está sempre quente…

No dia seguinte, logo cedo, o pai foi à cidade. Na volta, trazia ao colo uma bela caixa azul, a cara fechada enquanto o cocheiro conduzia a charrete. Entrou na casa com a embalagem nas mãos, à vista da esposa e da filha, que estavam reunidas na sala conforme orientação prévia do pai. Odetta estava em pé, ao fundo do compartimento, observando com a típica expressão franzida.

—Nesta caixa trago meia dúzia de cafa… camafeus. São doces muito finos! Não quero que ninguém os pegue que não seja à minha vista e com minha autorização – falou de forma abrupta, seus olhos terminando a frase voltados para a pequena Amada – Se eu der falta de um único deles, o responsável será punido com o merecido rigor, conforme a minha vontade.

Dito isso, encaminhou-se até a cristaleira, abriu a porta e pousou a caixa azul sobre uma pilha de pratos rasos, na prateleira mais baixa. Queria que estivessem ao alcance dos olhos e das mãos de Amada. Tinha certeza do que aconteceria. Saiu da sala sem dizer mais palavra, a pesada bengala batendo no assoalho, num compasso torto com os tacos das botas. Foi cuidar dos assuntos da fazenda, olhar os escravos no eito, verificar como ia a colheita. O povo da sala dispersou, Amada levando suas bonecas para a varanda frontal do sobrado, mas não sem antes olhar de esguelha para o armário recheado com as deliciosas iguarias. Odetta, em sinal de respeito, aguardou de olhos baixos que todos saíssem, para só então colocar-se em movimento.

Ao pôr do sol, com o retorno do Senhor à casa-grande, a tragédia instalou-se. A insistência de sinhazinha Amada em negar o óbvio enfurecia o pai!

—Não negue! – vociferou ele.

—Não fui eu! – chorava a menina, ciente do castigo que viria – Eu não comi o doce!

—Não negue, minha filha, você sabe que é pior! – clamou a mãe, já aflita.

O pai, destemperado, avançou para aplicar a disciplina à filha.

—Nãããooo!!! – gritou Amada, enquanto saía correndo sala afora.

O Senhor não pensou, imediatamente saindo em perseguição à garota. Amada, com pés ligeiros de criança assustada, fugia para algum lugar que não fazia ideia de onde seria. Desejava apenas se ocultar da fúria do pai por um tempo. Conhecia a mão pesada dele, que na hora da raiva descia ainda mais severa. Mas Amada titubeou ao chegar à escada que descia ao jardim. Foi apenas uma fração de segundo, mas o suficiente para que seu perseguidor chegasse perto o bastante para quase tocá-la. A garota principiou a descida resoluta, o pai ciente que não conseguiria alcançá-la com o joelho ruim. Num ato de raiva cega, a pesada bengala tornou-se extensão do braço e da cólera paterna, descrevendo longo arco no espaço e alcançando a têmpora direita da garota. Já inconsciente, a menina tombou. Seu corpo rolando sobre os degraus, fraturando-se, partindo algo etéreo e importante que liga a vida à carne. Três segundos, apenas três segundos, e o corpinho quedou inerte sobre o caminho de seixos ao pé da escada. Mas para quem assisti
a a cena, foi uma eternidade.

No alvorecer seguinte, o corpo de Jesuína balançou sem vida no pelourinho da cidade, a corda atada ao pescoço. “Ela matou a filha do Capitão!”, comentavam entre a assistência do mórbido espetáculo. “Foi vingança. Inveja da vida da menina Amada, cheia de mimos. Escravo é assim mesmo, traiçoeiro!”; “A história foi confirmada pelos pais e pela governanta italiana, gente de bem, de moral. É uma verdade clara!”. Enquanto isso, Maria Amada era enterrada ao pé do altar da igreja de São Honorato. Partia vestida de anjo, mortalha de ricos adornos, em um caixão de galão dourado que a acompanharia na cova. Um batalhão de carpideiras chorava lágrimas falsas que não conseguiam verter dos olhos do pai. O Senhor estava convicto que só fizera o que era certo em tentar educar a filha. Fora uma fatalidade que as pessoas não entenderiam. Deus quis assim, precisava de mais um anjo no céu.

Dias depois, Odetta seguia pela rua, sozinha. Vinha toda vestida de preto, acompanhando o luto das pessoas da casa-grande. Atravessou o largo, encharcado pelas chuvas que persistiam desde o sepultamento da sinhazinha, as barras do vestido longo imundas de lama vermelha e outras sujeiras dos caminhos. Iniciou a subida da pequena escadaria que a levaria até o destino pretendido. Necessitava confessar ao padre seu erro. Faria sua penitência com o coração em profunda contrição. Arrepender-se-ia sinceramente e não mais repetiria o pecado da gula. Mas até lá, ainda poderia lembrar com prazer o sabor dos seis deliciosos camafeus, os mais delicados doces que jamais provara.

………………………

Cassiano Silveira é contista e eventual poeta, conforme a imaginação mandar. “Camafeus – histórias curtas” (Tão Livro, 2025), seu último livro, traz 18 textos curtos, de rápida leitura, explorando em geral temáticas do cotidiano, crítica social, amor, paixão e ansiedade. Muitas vezes com finais abertos, buscam fazer o leitor se mexer na cadeira, no sentido de buscar formas de reacomodar suas certezas sobre a vida, o normal e o natural. O livro pode ser adquirido em:
https://www.livrariadabok2.com.br/camafeus-historias-curtas
Perfil do autor no Instagram: @siano_silveira

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