Ele a amava, ela retribuía, mas com menos ardor. Como ensinam os franceses, sábios nas coisas do coração, “Um beija, o outro oferece o rosto para ser beijado”.
Não tinham filhos, investiam em suas carreiras e tinham uma vida bem confortável. Mas ela sentia-se presa, avezinha dentro de uma gaiola de ouro. Não que pensasse em traí-lo, isso não lhe passara pela cabeça. Mas sentia falta da liberdade para arriscar tudo num só lance, de correr riscos, ressentia-se da impossibilidade de conhecer outros homens tão interessantes quanto ele, mais interessantes que ele.
Ela sentia falta até mesmo de uma vida com mentiras, da referência falsa a uma tarde com alguma amiga, quando na verdade estava em um barzinho com um cara atraente, entretida com o doce e perigoso jogo da sedução. Como ensina Caetano Veloso, sábio nas coisas do coração, “Você diz a verdade, e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir”.
E então, certo dia, ela conheceu o Outro. Um novo colega de trabalho, atraente e de ar perigoso. Apaixonou-se em pouquíssimo tempo. Ele oferecia o rosto para o beijo; ela beijava-o com sofreguidão, não apenas na face, mas pelo corpo inteiro, fêmea no cio, aberta para o amor.
Em casa, ele percebeu as mudanças na mulher. Parecia mais solta e também mais brusca, mais impaciente para com ele. Sábio nas coisas do coração, concluiu: “Há outro homem. Vou perdê-la”. Lutou contra essa ideia, desdobrou-se em gentilezas para com ela, conduziu-a a delírios de prazer na cama, mas nada adiantava: mal terminava uma transa memorável, ela se distanciava dele, seu rosto assumia uma expressão sonhadora, como se imaginando-se nos braços do Outro.
Certo dia, ao ler as palavras de Marcel Proust em A fugitiva, sexto livro de Em busca do tempo perdido, em que o romancista descreve o turbilhão de emoções que tomou conta dele após ser abandonado por Albertine, deteve-se na seguinte passagem: “Pus de lado todo o orgulho com relação a Albertine e mandei-lhe um telegrama desesperado, pedindo que voltasse sob quaisquer condições, que ela faria o que bem entendesse; pedia-lhe apenas que a deixasse beijá-la um minuto, três vezes por semana, antes de deitar-se”.
Tais palavras o fizeram mudar de tática. Levou-a para a sala, ocupou uma cadeira, a alguma distância do sofá em que ela sentara, e falou-lhe com suavidade, como dois estranhos conversando educadamente:
– Querida, sei que há outro homem – e, apagando seus protestos (falsos), prosseguiu – e, se não apareceu ainda, logo vai surgir (mentira, sabia que um posseiro qualquer já tomara conta, se não da imaginação e do espírito, pelo menos do corpo da amada). – Não quero perder-te de vez, devolvo-te a liberdade, suplico apenas que não vás embora em definitivo.
Ela o fitou por longo tempo. Depois levantou-se, ainda sem responder, e foi para o quarto do casal. Ele dormiu no sofá.
Durante alguns dias, as nuvens sombrias pareceram ter-se desfeito. Ela voltava mais cedo para casa, mostrava-se mais carinhosa, mais ardente na cama. A única regra, tácita, era “nem uma palavra sobre a proposta que me fizeste”. A gaiola podia estar escancarada, mas a avezinha relutava em abrir as asas e voar.
Quinze dias depois, o voo esperado finalmente aconteceu, ela saiu de casa. Não para viver com o Outro, ele soube depois, mas para morar sozinha, em um apartamentinho que alugou. Quase em seguida, um amigo do casal contou-lhe que ela ficara indignada, ou quase, por ele ter aberto mão de seu amor tão facilmente, não ter insistido em arrancá-la dos braços do Outro. Julgou-se traída por ele aceitar tão civilizadamente a traição, como se isso lhe roubasse a liberdade de escolher entre os dois homens que a desejavam. E que ela continuava a amá-lo, talvez mais do que antes, ou pelo menos mais consciente desse sentimento do que antes, mas que não lhe perdoava o ter-lhe roubado a possibilidade de escolha, a liberdade de machucar uma das asas por um voo que a levasse de encontro a algum obstáculo.
