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Entre a dor, a escrita e o direito de existir fora das grades

As três crônicas que apresento aqui “Os boletos também choram”, “Manual de sobrevivência para corações desastrosos” e “Como quase enlouqueci no campo (mas saí com dados incríveis)” não nasceram de um plano literário, mas de uma travessia pessoal, política e existencial. Elas foram escritas entre um campo de pesquisa em hospital psiquiátrico, uma tese de doutorado nas Ciências Sociais e o colapso emocional de quem teve que reconstruir a própria vida em meio ao luto de um divórcio, à pressão acadêmica e à solidão de uma mulher que escreve para não ser internada em si mesma.

Esses textos se colocam no mundo como testemunhos ficcionalizados, híbridos entre crônica, relato de campo e desabafo. São pedaços de mim e de muitas outras que, como eu, andam beirando o limite o da sanidade, o da conta bancária, o da paciência, o da existência.

Escolhi lançá-los neste mês porque neste domingo, 18 de maio, é mais que uma data no calendário: é uma bandeira que precisa continuar sendo levantada. O Dia da Luta Antimanicomial marca um posicionamento ético: ninguém deve ser privado de liberdade pelo seu sofrimento psíquico. E, no entanto, todos os dias seguimos produzindo novas formas de encarceramento simbólicas ou literais para quem sente “demais”. A escrita, então, torna-se um grito lúcido, um gesto de rebeldia diante de um mundo que insiste em patologizar as dores legítimas da existência.

Essas crônicas foram feitas para rir e pensar. Para provocar incômodo e alívio. São textos que misturam Foucault com forró, Goffman com boleto vencido, CAPS com poesia. Porque eu sou essa mistura: pesquisadora e sobrevivente, escritora e paciente, cientista social e mulher que um dia pensou que não sairia viva do próprio campo de pesquisa.

Meu objetivo, ao escrevê-las, não é só compartilhar uma experiência singular, mas evidenciar como a linha entre quem estuda a loucura e quem é chamada de louca é finíssima — e, às vezes, inexistente. E mais: quero lembrar que a literatura também pode ser ferramenta antimanicomial. Pode ser cuidado, denúncia, reconstrução. Pode ser o lugar onde pessoas despedaçadas se reconhecem inteiras.

Se essas palavras encontrarem abrigo nas páginas de alguma revista, já terão cumprido sua função: mostrar que a escrita ainda é a forma mais bonita que encontrei de não enlouquecer completamente — e de lembrar aos outros que não estão sós.

(I) Eu, louca? Só quando respiro
Fui fazer pesquisa de campo num hospital psiquiátrico e acabei pesquisando a mim mesma. Não foi intencional. Juro que entrei de jaleco, prancheta, caderno de anotações e o clássico ar de quem vai observar. Mas bastaram duas semanas para eu começar a confundir o som da chave da enfermaria com o som da minha própria angústia. Fui ouvir os silenciados, mas foi o meu silêncio que gritou primeiro.

Michel Foucault me acompanhava como um santo de bolso. “História da Loucura” era minha novena acadêmica. Ele dizia que a loucura era uma construção histórica, uma categoria moldada pelo poder e pela medicina. Mas o livro não te avisa como se proteger quando a construção te engole. Não te avisa que o barulho da chave trancando a porta pode disparar memórias que você nem sabia que estavam lá, quietas, no fundo do seu inconsciente e da sua infância.

Lembro da paciente que me disse: “Aqui, ou você finge que melhorou ou você nunca sai”. Eu anotei como uma boa cientista. Mas depois fiquei noites em claro pensando se isso também não era válido para o lado de cá da grade. Quantos de nós fingimos estar bem, fingimos produtividade, fingimos estabilidade emocional só para sair da cama? A fronteira entre sanidade e desespero é muito mais frágil do que o jaleco sugere.

Na segunda visita, chorei escondida no banheiro da ala feminina. Não pelas histórias das pacientes. Mas porque vi a mim mesma em cada uma delas. Em seus surtos contidos, nas perguntas repetidas, nas cartas nunca enviadas. A pesquisa estava dando certo. Os dados eram ótimos. Eu é que estava desmoronando.

Foi ali que escrevi, com a caneta azul da enfermaria, em meus próprios braços: “Não quero esquecer que sou humana”. Parecia dramático na hora. Hoje, virou trecho de crônica. A dor foi transcrita, decupada, literaturizada. O que era um colapso silencioso virou material de resistência simbólica. Foucault explicaria como um ato de insubmissão à lógica disciplinar. Eu chamo de sobrevivência.

Não fui internada. Mas quase. E talvez devesse ter sido. Ou talvez o mundo é que precise de uma internação coletiva. O que aprendi ali é que a loucura é menos um diagnóstico e mais um espelho: nós, os ditos normais, é que estamos sempre à beira de um colapso, mascarado por boletos, deadlines e fingimentos diários.

A pesquisa rendeu um capítulo inteiro. Mas quem me salvou mesmo foi a escrita. Desde então, não parei mais. Crônica virou meu remédio. Literatura, meu laudo. E a cada texto, uma alta simbólica. Porque, afinal, não há cura para quem escreve. Mas talvez haja alívio.

E eu, louca? Só quando respiro. E é por isso que continuo escrevendo.

(II) Manual de sobrevivência
Aviso logo: esse manual não tem bula, nem contraindicação. Foi escrito em dias de choro no box do banheiro, com a toalha de estimação no pescoço, ouvindo Caetano e falando sozinha como quem faz etnografia do próprio abismo.

Minha tese de doutorado foi escrita entre rompantes emocionais, orçamentos estourados e crises de identidade. Erving Goffman bem que tentou me avisar: a vida é uma encenação, e cada um representa um papel. O problema é quando você está nos bastidores da própria vida e ninguém te entrega o roteiro.

Me separei no meio da tese. Sim, E-MEIO. Não recomendo. Um dia eu estava escrevendo sobre sofrimento simbólico e desigualdades estruturais, no outro dia estava no cartório dividindo cafeteira e custódia emocional de cachorro. A única estrutura que me sustentava era a da ABNT.

A dor virou parágrafo. A raiva virou citação de Foucault. O luto, uma nota de rodapé. Comecei a escrever como quem grita para não enlouquecer e não fui a única. Quantos de nós estamos usando o Word como terapia e o Google Scholar como confidente?

Nesse manual de sobrevivência, não tem mágica. Tem café requentado, tem texto recusado, tem crise de choro em grupo de pesquisa e tem aquele momento em que você se olha no espelho e diz: “Eu sou cientista social, não vidente, mas previ esse colapso”.

Aprendi com as doidas do CAPS, com as amigas do grupo de mulheres, com Conceição Evaristo e com minha própria avó: sobreviver é um ofício, e às vezes a gente precisa ser ridícula para seguir viva. Às vezes, a vergonha é a única companhia fiel. Mas a escrita é o lugar onde a gente faz as pazes com o que não teve fim.

Então, se você estiver de ressaca emocional, cobrando produtividade, chorando em frente ao boleto ou se perguntando se o amor ainda existe: respira. Reaquece o café.

E escreve. Mesmo que seja errado, mesmo que ninguém leia. Porque a literatura é o lugar onde corações desastrosos encontram abrigo.

E se um dia alguém te disser que você escreve demais sobre si, diga com orgulho: “É que minha vida é tão caótica que virou fonte primária”.

(III) Como quase enlouqueci no campo
A primeira lição de uma pesquisa de campo é simples: nunca subestime o campo. A segunda é mais cruel: o campo sempre subestima você.

Entrei num hospital psiquiátrico com o crachá da universidade e o sonho romântico de observar, registrar e analisar. Saí com os nervos em frangalhos, três diários de campo encharcados de lágrima e a impressão de que a única pessoa em surto era eu. Foucault me sussurrava: “O manicômio é uma invenção da razão”. E eu gritava de volta: “Pois a minha razão está em frangalhos, Michel!”.

Fiz amizade com as internas. Comi bolo com elas, dancei forró nas tardes de sol, ouvi histórias que nenhum artigo teve coragem de publicar. Uma delas me disse: “Você escreve bonito, mas tá com o olho triste. Cuidado, senão eles te internam também”. A risada foi coletiva, mas a pulga ficou atrás da minha orelha por semanas.

Goffman chamaria aquilo de “instituição total”. Eu chamei de “colapso existencial com base empírica”. Enquanto anotava as rotinas, os silêncios, as portas trancadas e os olhares perdidos, algo em mim também se trancava. Tinha dias que eu voltava pra casa em silêncio absoluto, como quem carrega fantasmas no ombro. E escrevia. Sempre escrevia. Nos braços, nos cadernos, no bloco de notas do celular, nos guardanapos de padaria. A escrita virou minha forma de não surtar completamente.

E quando a orientadora perguntou como eu estava, eu menti. Disse que tudo ótimo. Que os dados estavam “brotando”. E estavam. Mas estavam brotando de uma rachadura imensa que se abriu dentro de mim. O campo me atravessou como faca sem cabo. E ainda assim, a antropologia, essa ciência apaixonada por gente esquisita, me salvou de mim mesma.

No fim, o hospital não me internou, mas a tese quase me enterra. Quase. Porque toda vez que eu pensei em desistir da tese, da vida, da escrita uma crônica nascia. Uma poesia me chamava. Uma paciente me dizia: “Ei, escreve isso aí, doutora. Mas escreve bonito”.

E eu escrevi.

Porque quando tudo falta, a escrita é a última lâmpada acesa no hospício da nossa existência.

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