— AAAAAiiiii!
Zé Renato espantou-se com o grito dado por Clara, sua namorada, na cama.
— O que foi?
— Uma catástrofe! Quebrei meus óculos, olha, as duas hastes… Estou perdida.
Clara ia pelos 38 anos. Usava óculos desde os 32. Professora de biologia, sentiu um dia que, corrigindo provas, as letras dos alunos estavam cada vez mais miúdas, ou que precisava forçar os olhos como nunca para enxergá-las. Demorou a dar o braço a torcer, até quando precisou mandar consertar o paralama do carro vermelho, quase novo, pois o ralara inteiro numa coluna da garagem que não percebera. Foi ao oftalmologista, que decretou:
— Você tem grau para perto e para longe. Não pode deixar de usar óculos, se não vai piorar.
Ela protestou. Ficaria com aparência de uma coroca. Não aceitava. Mas capitulou, e até achou que ficou com um certo charme depois que escolheu uma armação pequena e discreta, de cor neutra, que combinava com qualquer visual. Andou se olhando no espelho, se achando mais séria, mais respeitável. Ao fim, percebeu-se totalmente integrada aos óculos, e abraçou-os como um traço de sua personalidade. A professora competente, concentrada, segura de si. Ademais, pelas lentes de seus óculos, o mundo fez-se outro – mais colorido, mais nítido. Ela não percebera o quanto padecia da falta deles, até que passou a usá-los o tempo todo. Desde os primeiros óculos, houvera a sucessão de uns dois ou três pares, sempre para acompanhar a progressão do grau das lentes.
Ainda não conhecia Zé Renato na época em que começou a usar as lentes mas, quando ele a viu pela primeira vez, achou-a bonita de óculos. Até mais do que sem eles.
Naquela noite de sábado, estando os dois se preparando para dormir, ela repousara o acessório a seu lado e, ao virar para levantar e ir pegar água na cozinha, ouviu um “crec”, seguido do grito que deu para o espanto do namorado.
— Gente, que droga, eu não sou ninguém sem óculos.
O namorado contemporizou. A identidade de Clara não podia se resumir aos óculos. Ela era muito mais que aros, plaquetas, ponte e lentes.
Ela fez beicinho. Como trabalharia durante a semana? Como dirigiria de volta para casa?
Lembrou-se de que, em casa, tinha outro par, o anterior ao que vinha usando e trocara fazia uns meses. Quebrariam um galho enquanto não se recuperasse da tragédia. Problema resolvido, se a casa do namorado, onde estavam, não fosse a 150 quilômetros de distância da dela.
Zé Renato sugeriu:
— Posso arrumar! Coloco um esparadrapo aqui, outro ali…
— Fala sério, Zé… E eu vou andar por aí com óculos remendados a esparadrapo?
— E se colar com Superbonder?
— Pior! Amanhã vamos no shopping? Quem sabe eu não consigo quem conserte em alguma ótica? Ao menos para poder voltar pra casa mais tranquila.
Zé Renato ainda pegou os restos mortais dos óculos de sua amada nas mãos, estudou o estrago, e viu que ambas as hastes haviam sido separadas no lugar onde se articulavam com o restante da armação. Tentou encaixar ambas, mas não houve jeito.
De manhã, durante o desjejum, Clara forçava os olhos para enxergar o ovo mexido de cada dia e a xícara de café descafeinado. Depois, reclamou com Zé Renato que nem se pentear direito conseguia. Um drama.
— Eu penteio você, meu amorzinho, basta dizer como quer que eu faça.
No início da tarde, visitaram 4 óticas no shopping center. Em todas, o diagnóstico foi unânime.
— Do jeito que está, não tem conserto. O que podemos é colocar essas lentes numa armação nova.
Clara não quis. Do contra. Preferiu deixar para resolver a questão em sua cidade, onde os preços, certamente, estariam mais em conta. Mas ainda faltava resolver o problema da volta para casa, pelo menos.
Durante o almoço, conversavam. Clara dizia:
— Eu sigo uma consultora de estilo no Instagram que presta consultoria para a pessoa escolher o modelo de óculos conforme a mensagem que quer passar. Eu não havia tido coragem de pagar os dois mil reais da consultoria quando fiz os últimos, mas, sei lá… Acho que agora vou fazer. Quero criar a imagem de uma professora moderna, arrojada, bem sucedida e inteligente.
— Você já é tudo isso, não precisa dessa consultoria cara. Faz assim: compra uma armação de cor clara, de preferência transparente, ou com pequenos detalhes em cinza. Vai ficar leve, bonito. Vai ser um sucesso!
— Não, só vou decidir depois da consultoria. Eu sei que ela facilita o pagamento.
— E ela se formou em “consultora de óculos” onde?
— Ah, Zé, não desdenha. Eu tô falando sério. Eu vou fazer a consultoria.
O rapaz se conformou. Afinal, o dinheiro era de Clara, e ela podia fazer o que quisesse. Mas teve um pouco de inconfessável raiva ao saber que alguém ia tomar da namorada duas milhas apenas para dizer que armação de óculos ela devia usar para “mandar um recado”. Achava uma charlatanice esse tipo de consultoria, onde os consultores não contribuíam mais do que com achismo e o senso estético.
No fim daquele domingo, a moça deslizou sobre o asfalto o simpático carrinho vermelho com os óculos remendados à base de esparadrapo, como Zé Renato havia se proposto a fazer para amenizar o sofrimento da professora.
Clara enviou mensagem para a tal consultora na segunda-feira, logo cedo. E cumpriu todas as exigências que foram informadas. Mandou foto de rosto, de frente e de perfil, falou sobre paleta de cores, aspirações, intenções…
A semana na espera do produto da consultoria foi horrível. Ela acabara tendo que ficar com os óculos quebrados em uso, os anteriores lhe deram até dor de cabeça, de tanto forçar os olhos. As hastes que Zé Renato pregara com esparadrapo teimavam em se soltar. Mas Clara conservou a paciência.
Até que recebeu a resposta. Em quase 20 páginas de relatório, a consultoria apontava estilos, discorria sobre formato de rosto, combinação de cores. Era um trabalho e tanto.
Na parte final, a recomendação, até com simulação de imagem, daquilo que combinava melhor com Clara.
De todas as possibilidades, uma chamou-lhe a atenção. Primeiro, porque achou ter dado muito certo. Segundo, devido à descrição da proposta:
“Uma armação de cor clara, de preferência transparente, ou com pequenos detalhes em cinza.”
Zé Renato sabia o que dizer nessas situações. Ela mostrou-lhe a consultoria na primeira oportunidade, e o rapaz se regozijou intimamente pelo acerto. A moça quis saber:
— E aí, surpreso?
— Bom, se você tiver gostado, creio que eu gosto também. Sim, gosto muito.
Entre sinceros elogios, que sempre fazia à namorada, limitou-se a acrescentar:
— Vai ser um sucesso. Um sucesso.
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Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).
