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Entre poesias e Revolução Cubana

Aos 15 anos, quase 16, o futuro de Cláudio prenunciava-se sem nuvens, um céu de brigadeiro. Ele cursava o primeiro colegial e era um dos melhores alunos da classe. Mas não correspondia à imagem clássica de cdf: era popular, um esportista de razoável para bom e inigualável como animador de torcida, improvisando musiquinhas que zoavam com o adversário e estimulavam as equipes do colégio à vitória. Ao mesmo tempo, vivia uma fase de descobertas – da literatura, com destaque para a poesia de Carlos Drummond de Andrade, da política de esquerda (graças à Revolução Cubana e à Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola, que derrotou um golpe militar ou, no mínimo, o adiou por quase três anos), do amor e do sexo.

Esses dois aspectos eram decisivos em seu devir. Cláudio e Helena, sua namoradinha da mesma idade, morriam de tesão mas não avançavam (muito) o sinal, mantendo-se virgens a contragosto. Na última semana, porém, ele havia recebido um bilhete de uma colega de quase 17 anos, uma das meninas mais gostosas do colégio. Dizia o seguinte:

“Gatinho, você deve ser virgem. Quer deixar de ser? Passe na minha casa sexta que vem, às 19 horas. Meus pais só voltarão no domingo.

PS – Nada de namoro, não vou competir com Helena. Só tô a fim de sacanagem”.

O rapaz quase desmaiou de emoção. A sexta-feira custava a chegar, os dias pareciam se arrastar. E, a cada um deles, relia vezes sem conta o bilhete, passaporte para o prazer.

Outra dimensão que tornou ainda mais luminoso o seu futuro foi a da política estudantil. Uma semana antes de receber o bilhete da proposta sexual, Cláudio foi procurado pelo presidente do grêmio. Depois de muitas idas e vindas, o prócer mirim sugeriu – político que é político não promete nada, só faz sugestões – que ele poderia ter o apoio da atual diretoria, caso se candidatasse a presidente do grêmio escolar.

– Não porque você seja um excelente aluno, seja progressista ou tenha fundado um dos jornais da nossa escola – concluiu o presidente. – Tudo isso conta, mas não é decisivo. É que você é popular, todo mundo, dos líderes estudantis à tigrada repetente, te acha legal.

Nisso, o político em miniatura estava errado. Havia pelo menos um aluno que não ia com a cara de Cláudio e era pago na mesma moeda.

A exceção chamava-se Adilson. Ele e Cláudio estiveram na mesma classe no segundo ginasial, quando as turmas foram organizadas por ordem alfabética (Cláudio era um dos últimos na chamada). Eram diferentes como água e vinho, Adilson baixinho, forte e um candidato a sucessivas repetências, o outro alto, magro e um excelente aluno. Os dois se desprezavam mutuamente, seus santos não batiam. Mas não seria a hostilidade isolada de uma ovelha negra que iria prejudicar a vitoriosa carreira política do favorito dos deuses,

Na quarta, quando faltavam dois dias para a perda da virgindade, Adilson e Cláudio se esbarraram no pátio do colégio, na hora do recreio. Talvez algo tenha sido dito, talvez o desprezo nos olhos de ambos transparecesse mais forte que o habitual. O fato foi que Adilson desferiu, sem aviso, sem a troca de ofensas típica da fase inicial de uma briga entre rapazes, uma bofetada que fez arder a face de Cláudio e lhe encheu os olhos de lágrimas.

E algo se quebrou.

Aturdido, quase em choque, Cláudio não reagiu. Voltou à sala, cambaleando como se estivesse bêbado. Alguns, uns poucos, viram o sucedido; no dia seguinte, toda a escola comentava o caso. A grande maioria negou veementemente que ele fosse covarde, já o tinha visto sair na porrada com rapazes mais velhos e mais fortes; mas admitia que sua apatia era “meio esquisita”. Mentes jovens não perceberam a quebra no psiquismo da vítima do tabefe, como uma rachadura quase imperceptível em um cristal antes valioso.

A primeira reação veio da ex-quase futura desvirginadora. Na quinta, o esbofeteado recebeu um bilhete curto e grosso: “Vamos adiar”. Nenhum ”gatinho”, nenhuma menção a namoro ou sacanagem. Ele percebeu que daquele mato pubiano nunca mais sairia coelho.

Depois houve o silêncio ensurdecedor da moçada do grêmio. Cláudio não podia reclamar, nunca ocorrera uma promessa formal de apoio. Simplesmente, não se falou mais em candidatura.

Desse modo, o céu de brigadeiro do futuro do rapaz cobriu-se de nuvens sombrias. Pior, ele passou a tomar decisões prudentes em todas as esferas de sua vida, decisões que não trouxessem o risco de novo golpe de surpresa, de mais um bofetão. Ele e Helena perderam a virgindade juntos, numa transa sem muito entusiasmo, um ano depois; casaram cedo, tiveram um casal de filhos, viveram um arremedo morno de amor. Ele cursou Direito, seguindo o exemplo tedioso do avô e do pai. Na primeira oportunidade, fez um concurso público que lhe deu segurança à custa de rendimentos medíocres. E assim seguiu pela estrada da vida, sempre com passinhos curtos e cuidadosamente medidos, sempre atento a uma eventual bofetada vinda não se sabe de onde, desferida não se sabe por quem.

Repetindo, em sua descoberta da poesia, Cláudio encantou-se com os versos de Drummond de Andrade. Se tivesse lido, aos 15-16 anos, o livro Pauliceia Desvairada, do paulista Mário de Andrade, talvez se detivesse no poema Ode ao burguês, cheio de sarcasmo dirigido ao homem-curva, ao homem-nádegas, que “é sempre um cauteloso pouco-a-pouco”. E talvez compreendesse como o tapa havia afetado irremediavelmente seu equilíbrio psíquico, tornando-o um burguês bem comportado, um homem-nádegas, apesar de seu esquerdismo, de sua crença sincera na revolução e no socialismo.

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