Em uma outra dimensão, em uma dobra do espaçotempo, não muito longe da ilha das amazonas, havia outra ilha chamada Lian, que abrigava um país do mesmo nome. Lian, o país, era diferente dos reinos dos contos de fadas. Primeiro, não tinha rei nem rainha, era uma república, governada por um gestor eleito pelos cidadãos. Segundo, abrigava uma grande quantidade de animais trazidos da nossa dimensão: vacas e touros, éguas e cavalos, galinhas e galos. Sorte deles, na ilha não havia predadores nem serpentes venenosas e toda a população era vegetariana. Matar um bicho para comer sua carne era algo inimaginável. Seria o maior dos crimes, praticamente tão grave quanto matar uma pessoa.
Lian era uma república havia bem pouco tempo, apenas 14 anos. Antes, como os reinos dos contos de fadas, tinha rei, rainha e uma linda princesinha, mas os três haviam desaparecido em um naufrágio do iate real, golpeado por terrível tempestade. Seus corpos jamais foram encontrados. Desolada, a população aboliu a monarquia e proibiu o uso dos nomes das três vítimas – Leon’nel, o rei; Leia’a, a rainha, e Lian’na, a princesinha – para as crianças nascidas depois daquele dia triste.
Mas havia pelo menos outra Lian’na no país. Era uma jovem de quase 16 anos, nascida antes da tragédia ocorrida com a princesa. Mesmo assim, muitas vezes era criticada por gente intolerante (há pessoas assim por toda parte, até mesmo nas repúblicas vegetarianas situadas em uma dimensão paralela à nossa), que a censuravam por insistir em manter sua denominação.
– Muda de nome, menina teimosa! – ela ouvia todos os dias. – É o mínimo que você pode fazer, em respeito à princesinha desaparecida.
Mas ela ignorou as censuras e conservou o nome escolhido pelos pais. E por uma razão: Lian’na lembrava de tudo.
Em seus frequentes pesadelos, e mesmo em momentos de vigília, ela revivia o naufrágio, as velas se rasgando, as madeiras se estilhaçando e todos a bordo sendo tragados pelas águas. Sobrevivera não sabia como, estava desfalecida, mas tinha uma vaga lembrança de que, pouco antes de perder os sentidos, uma foca se aproximou e transmitiu-lhe a mensagem:
– Pobre menina, vou levá-la até a praia!
Fazia sentido, pois Lian’na desde bebezinha podia conversar, em pensamento, com toda espécie de animais.
À beira da morte, a pequena náufraga foi resgatada por uma família de agricultores que vivia perto da costa. Teve uma infância sem luxos mas sem grandes dificuldades, até porque a educação e a saúde eram gratuitos para todos os habitantes da ilha. Foi uma filha obediente para o casal sem outras crianças, exceto em um ponto: recusou-se a aceitar o nome da mãe de sua salvadora.
– Meu nome é Lian’na desde que nasci, e vai continuar sendo! – repetia, sempre que os pais tentavam chamá-la pelo nome da avó postiça.
Resignados, eles tiveram de chamá-la de Liana, sem a dobra de consoantes e a aspa simples identificadoras dos nomes da nobreza – e que, é evidente, só eram percebidas na escrita.
Lian’na, Liana para os pais e os demais habitantes da pequena comunidade, jamais se proclamou princesa. Na infância, não tinha noção do que o título significava, sabia apenas que havia perdido sua mamãe e seu papai tão queridos. Depois, quando os bichos, reconhecendo sua essência, começaram a chamá-la de princesa, considerou uma brincadeirinha, algo divertido, não mais que isso. Mais tarde, quando soube do desaparecimento, no mar, da família real, achou mais prudente guardar silêncio. Não tinha a menor intenção de reivindicar a coroa e estava consciente de que se revelar poderia causar problemas para seus pais de criação, seus salvadores. A república era jovem, recém-fundada, havia muitos nobres poderosos que cobiçavam a gestão suprema e fariam de tudo para afastar novos concorrentes, em especial se viessem das camadas sociais mais humildes.
A menina cresceu ajudando a família nos trabalhos agrícolas. Ocasionalmente, ganhava um dinheiro extra prestando serviços a terceiros no pastoreio – algo bem fácil para ela, devido a seu dom de se comunicar telepaticamente com todos os bichos.
O tempo passou. Aos 15 anos, Liana era uma jovem alta e forte, apesar do corpo esguio. Adorava esportes, todos, mas saía-se melhor nas disputas de arco e flecha, nas corridas a cavalo e no futebol. Este último fora importado de nossa dimensão e se transformou na grande paixão da gente da ilha. As regras eram quase idênticas às do chamado esporte bretão do nosso planeta, mas havia diferenças importantes.
Primeiro, as equipes reuniam rapazes e moças, a igualdade de sexos era uma realidade do cotidiano em Lian. Segundo, não havia as chamadas faltas táticas, para impedir um ataque perigoso do adversário; quem procedesse assim era sumariamente afastado, por pelo menos uma temporada, por falta de espírito esportivo. Terceiro, quando alguém, por inabilidade, por chegar atrasado na disputa da pelota, atingia gravemente um atleta do outro time, ficava sem jogar até que sua vítima regressasse aos campos esportivos. E, além disso, ouvia vaias ensurdecedoras, pontilhadas por gritos de “grosso” e ‘brutamontes” vindos de ambas as torcidas, Quarto, como não havia indústria de plásticos no país, as bolas eram feitas de couro macio de filhotes de foca, retirado depois que estes morriam de causas naturais ou vítimas de predadores marinhos e só parcialmente devorados. Assim, eram poucas, tidas como objetos de grande valor. Finalmente, não havia equipes profissionais, todos eram amadores e tinham suas próprias profissões.
Foi nas disputas de arco e flecha e nas corridas de velocidade a cavalo que Luana se inscreveu, para as comemorações do aniversário do país, abertas a homens e mulheres maiores de 15 anos. Para seu terceiro esporte, o futebol, a moça foi inscrita por sua equipe, Águias, onde atuava como meio-campista.
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A parte II deste folhetim será publicada na quarta-feira, 13.
