Notibras

Escrever é ato de desvelamento, um mergulho profundo, de escafandro e silêncio

“Escrever é ouvir a palavra perdida”, diz Pascal Quignard, para quem a noite habita a fonte das palavras. Entro nessa definição trajando roupa de escafandrista, aparelhada pela poesia. Certo que há um tesouro perdido onde se abre a palavra – à contrapelo da vida. Os olhos se impregnam do inquestionável, enquanto os outros sentidos permanecem cegos, apurando-se apenas naquilo que aos olhos se esgota antes mesmo de ocorrer.

A escrita seria, então, uma operação de desvelamento – contraída, contudo, pela impossibilidade de dar causa-fim ao que se revela. Somos pintores quando ouvimos as ondas e escrevemos com a fonte dos sentidos, aquela talvez mergulhada na indistinção das potências, no frio da febre, no zelo do mazelo, na dança do semear.

Se escrever é a noite-ventre das palavras, há no cerne dessa atividade um impossível espelhamento, uma genética falha, um burilar-se do selvagem que acumula fome. “Vai-se ao encontro de uma selvageria anterior à vida”, escreve Marguerite Duras. Além da dúvida e da solidão – gestos primordiais –, penso na precariedade com que a escrita nos confronta – e a si mesma.

“Achar-se em um buraco, no fundo de um buraco, numa solidão quase total, e descobrir que só a escrita pode nos salvar”. Indago à autora de Moderato Cantabile: como ser salva pelo despenhadeiro? Uma encosta pode ser resgatada pelo vento; uma escultura não é, também ela, erosão?

Refiro-me não apenas ao desgaste das palavras, mas ao do pensamento. Diz-se que pensar já é metafórico e metonímico, pois a linguagem é uma forma de deslocamento original: sujeito, objeto, signo com signo, real, nominado. Escrever é ousar a metamorfose da metamorfose. Por isso, aproxima-se tanto do orar quanto do morrer; e orar aproxima-se do voar, de dar nomes ao mundo. Da música que se depreende desses intervalos nem me atrevo a comentar.

Eu aprendi a ler num livro sobre sapos, e foi numa só golada – ou coaxar. Comecei balbuciante, enquanto minha mãe faxinava; ao fim, lustrava as palavras com a prosódia dominada. O mesmo ocorreu quando andei de bicicleta sem rodinhas – gosto de lembrar e contar esta história: iniciei sendo empurrada por minha mãe, quase abismo abaixo, no Alto Santa Lúcia, em BH. Depois de meia hora, fiquei amiga do equilíbrio.

Tão impregnada pela língua-mãe, não obtive sucesso em outros idiomas. O pouco que leio em inglês ou espanhol surge em meio a tanto acabrunhamento e cansaço psíquico que se torna impossível concluir algo, quanto mais escrever em outro língua que não seja o português. Mas escrever é meu desmundo: menos noite, confesso, e mais a ideia da noite que se percebe ao despertar.

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Betine Daniel nasceu no Rio de Janeiro em 1981. Poeta e servidora pública, formada em Letras, é autora de Harpia harpyja (Caravana, 2025), Corpo-esconderijo (Libertinagem, 2024), Ainda ancora o infinito (Moinhos, 2019) e Uma casa perto de um vulcão (Patuá, 2018). Seus poemas também circulam em plaquetes, sites, antologias e revistas literárias. Diagnosticada com autismo em 2022, investiga em sua poesia as metamorfoses do corpo e da linguagem.

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